Coluna - número 0
Pessoal,
vou postando aqui no blog textos antigos que escrevi sobre Carnaval. Aqui, posto uma coluna que escrevi para um "falecido" site e em seguida faço a análise dos sambas do Carnaval de 2004 .
Um número zero: um adendo metodológico: o que é e para que serve um samba-enredo?
1 - Saravá
É com muita alegria que inicio as primeiras linhas da primeira de uma série de colunas sobre o samba-enredo. Ainda que tímida ou limitada, creio ser uma contribuição inicial para uma maior reflexão sobre os rumos desse gênero musical que já esteve entre os mais ouvidos do país, e agora passa por um período de relativa estagnação. Relativa, como veremos, pois existe uma série de compositores – alguns, da antiga; outros, gratas revelações – que, num trabalho sistemático e coerente, buscam novos caminhos e soluções contra o estereótipo do samba-enredo atual. Apesar de uma longa tradição, o samba-enredo permanece ainda pouquíssimo estudado, e quando isso se faz, raras vezes se aborda o samba-enredo dentro de suas peculiaridades, como ato de composição ou segundo uma perspectiva histórica de consolidação do gênero. Esta série de colunas, então, todo o tempo procurará um diálogo entre o presente e o passado, não só como forma de resgate, mas também para estabelecer elos que nos permitam pensar o futuro e o presente do samba-enredo.
É preciso, antes, um pouco de paciência, até chegarmos ao cerne da questão. Primeiramente, portanto, esta coluna se concentrará em algumas questões de ordem metodológica, que esclarecerão ao leitor o que está em jogo aqui: qual é o ponto-de-vista que se oferece e os limites naturais dessa abordagem. Saravá aos que concluírem que a viagem possa valer a pena!
2 – O que é o samba-enredo ?
Em primeiro lugar, uma pergunta óbvia, mas necessária, que tentarei abordar da forma mais simples possível, quase ao risco de se tornar simplória: o que é o samba-enredo? O samba-enredo – ou samba-de-enredo, como alguns preferem chamá-lo – é um gênero musical específico, uma forma de samba. Não nos cabe aqui narrar o nascimento do samba, nem mesmo como breve rascunho, mas o que nos interessa é que o samba-enredo possui uma peculiaridade em relação a outros gêneros musicais: é um samba feito com fins específicos, para o acompanhamento de um espetáculo que o envolve: o desfile das escolas de samba. Dessa forma, o samba-enredo poderia ser pensado como a ária de uma ópera, que envolve um espetáculo de representação visual e canto. Mas enquanto a ópera é feita para ser contemplada, o desfile das escolas de samba é um espetáculo essencialmente participativo. Ou seja, o samba-enredo não é cantado apenas pelo tenor (no caso o intérprete, ou puxador), mas por todos os componentes da escola. Embora a ópera num certo sentido também possa ser vista como manifestação popular (a opera buffa, especialmente a do século XVIII, atraía as classes médias, em especial a ascendente burguesia contra o domínio das óperas aristocráticas), é certo que ninguém saía das óperas cantando as árias, e sim no máximo assobiando-as, já que, para cantá-las, era preciso um dom vocal fora do comum. Ao contrário, no samba-enredo, pede-se que o maior número de pessoas possa cantá-lo.
Além disso, o desfile das escolas de samba é um espetáculo único, enquanto a ópera pode ser reapresentada em diversas sessões. Por isso, o samba é de natureza perene; já a ópera pode ser novamente encenada, utilizando as mesmas árias e composições. Isto é fundamental se pensarmos nas gravações: o samba-enredo só pode ser gravado antes da apresentação, para ser comercializado nos três meses anteriores ao Carnaval. Após o desfile, o samba-enredo é parte de um passado: sua função está encerrada. Já a ópera nunca pode ser veiculada antes da apresentação inicial, apenas depois. Ouvidas as composições, pode-se rever a ópera, em outra apresentação.
Mas se o samba-enredo é parte de um espetáculo único – o desfile das escolas de samba –, é preciso ressaltar que o gênero é resultado de um processo de formação histórica particular: a história do samba-enredo caminha passo a passo com a história do desfile das escolas de samba, que, por sua vez, acompanha a própria história do Carnaval carioca. Dessa forma, o samba-enredo nasce com a escola de samba, e, como esta, guarda inúmeras influências das demais manifestações carnavalescas do Rio do início do século, em especial os ranchos, os cordões, os blocos e as grandes sociedades (o entrudo e o corso não tinham acompanhamento musical).
Por fim, deve-se notar que o samba-enredo deve ser visto como uma manifestação cultural originária dos excluídos. Criado no morro, nas periferias dos centros urbanos ligados à aristocracia e à burguesia, o samba-enredo é de origem negra e pobre, a paulatinamente teve sua inserção no “Carnaval oficial”, num processo histórico que transformou o desfile das escolas de samba e o próprio samba-enredo.
2 – Pra que serve um samba-enredo?
Feitas essas considerações preliminares, podemos avançar para um ponto mais interessante, e ainda fundamental: pra que serve um samba-enredo? De modo esquemático, são quatro as principais vertentes para tentar responder essa questão.
A) O samba-enredo é feito para empolgar o público, para contagiar o maior número de pessoas possível, de forma que seja uma explosão de alegria, sendo fácil de cantar e de memorizar, para que tenha um maior apelo popular. Essa é a vertente participativa.
B) O samba-enredo deve ser feito para dar resultados, para assegurar à escola uma melhor colocação no resultado oficial, para proporcionar o maior número de notas dez possíveis no desfile, não só no quesito samba-enredo, mas nos ligados à harmonia, evolução, etc. É a vertente pragmática.
C) O samba-enredo deve ser feito como melhor apresentação possível do enredo a ser desenvolvido pela escola, como uma espécie de roteiro e síntese do que a escola apresentará em seu desfile. É a vertente descritiva.
D) O samba-enredo deve ser feito para ser ouvido e admirado, valorizado como componente autônomo, com suas peculiaridades e características próprias, como ofício de composição propriamente musical. É a vertente autônoma.
Como rapidamente pode-se ver, o samba ideal é o que combina de forma equilibrada esses quatro elementos: o bom samba é o que consegue descrever o enredo de forma adequada, contagiando o público, permitindo à escola um belo desfile e um bom resultado, sem abrir mão de sua qualidade musical.
Por outro lado, cada uma dessas vertentes possui pontos fortes e pontos fracos, caso haja uma extrapolação dos seus princípios. A vertente participativa insere o samba-enredo no espírito carnavalesco, como uma manifestação essencialmente popular, numa visão do Carnaval como uma grande festa. Por outro lado, pode-se cair no “samba-clichê” com expressões fáceis e superficiais para estimular o componente a pular, e não sambar, ou a gritar, e não cantar. A vertente pragmática recupera o desfile competitivo, como forma de organização e planejamento para que a energia carnavalesca não se dissipe, mas por outro lado corre o risco em transformá-lo num artifício mecânico meramente técnico e sem vida. Já a vertente descritiva coloca o samba a serviço do enredo, contribuindo como uma peça no sentido do espetáculo ser mais acessível ao público. Por outro lado, o samba pode acabar se revelando meramente descritivo, didático, com predomínio da letra sobre a melodia. Por fim, a vertente autônoma tem seu destaque por conferir ao samba-enredo um tratamento privilegiado, vendo-o como gênero próprio, com suas particularidades e características, mas deixa de vê-lo de forma mais ampla, na sua relação com o desfile das escolas de samba e com o Carnaval carioca.
3 – Um ponto-de-vista: o compositor-autor
Isto posto, deve-se destacar que, ainda que tente conciliar as quatro vertentes, esta série de colunas tentará privilegiar o samba-enredo em sua vertente autônoma. O que se busca é exatamente pensar o samba-enredo como um gênero com características próprias. Nossa análise tentará analisar o samba-enredo em seu processo de autoria. O autor do samba, através de letra e melodia, pode expressar no samba-enredo a sua visão particular do próprio processo de composição de um samba-enredo, do Carnaval e sua relevância em relação ao dia-a-dia do resto do ano, seu ponto-de-vista sobre o enredo da escola, em suma, manifestar sua própria visão de mundo. No interior de um espaço restrito ao qual o compositor precisa se ater, tanto em termos do enredo proposto quanto em relação às próprias convenções rítmicas e melódicas particulares do gênero, o compositor pode procurar um espaço próprio de criação e de expressão particulares, levando o samba-enredo para além de meramente ilustrar ou descrever o enredo proposto. É esse conjunto de autores e de sambas-enredo que transcende os limites do gênero, desafiando suas convenções e seus processos típicos.
* * *
Nas próximas colunas, tentaremos mostrar algumas dificuldades relacionadas ao processo de autoria e ao modelo atual das escolhas de samba-enredo, em que os que assinam o samba nem sempre são os compositores. Além disso, iremos abordar alguns fatores que levaram o gênero atualmente a uma “relativa estagnação” – usando a expressão da primeira seção deste texto –, relacionados à primazia do visual sobre o musical nos desfiles atuais.
Marcelo Ikeda
12/11/2003
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