2/16/2009

Coluna - num 1

Coluna número um – a safra do Grupo Especial de 2004: a questão das reedições


Depois de uma primeira coluna tratando de alguns métodos de análise, nas próximas colunas vamos (felizmente!) dar uma pausa neste lado mais conceitual para investir no que interessa: os sambas em si. O CD do Grupo Especial de 2004 já está lançado, e não há como NÃO mergulhar de cabeça no assunto do momento, sobre a safra de 2004 e o papel das reedições. O assunto é delicado; os sambas merecem grande atenção. A agenda é essa: ao longo dessas duas colunas devemos avançar numa análise mais pormenorizada dos sambas do Grupo Especial; em fevereiro, logo antes do Carnaval, do Grupo A e do Grupo B (se realmente houver CD...). Em março, uma grande síntese do desempenho dos sambas no desfile, um apanhado geral do que representou a safra de 2004 em termos de samba-enredo, o que ficará e o que se perderá na poeira do tempo. E em abril, voltamos à nossa vaca fria, pois quero investir num assunto polêmico e importante: por que os que assinam o samba não são necessariamente os autores.

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Sobre as reedições

Como a essa altura todos já devem estar carecas de saber, quatro escolas aceitaram a iniciativa da Liesa para reeditar antigos desfiles que marcaram o Carnaval Carioca: Portela, Império Serrano, Viradouro e Tradição. As duas primeiras foram fiéis à proposta original, reeditando desfiles anteriores à criação do sambódromo. Viradouro e Tradição utilizarão sambas de outras escolas, um expediente no mínimo inusitado: a Viradouro, o desfile da São Carlos de 1975 sobre o Círio de Nazaré e a Tradição, o da Portela de 1984 (portanto já na era sambódromo).

Mas a grande novidade é que as escolas desfilarão com os sambas originais, fazendo com que Império Serrano, Portela e Viradouro desfilem em 2004 com os mesmos sambas de 1964, 1970 e 1975, respectivamente. As dificuldades são várias, especialmente porque as demais dez escolas irão desfilar com enredos e sambas originais, com as naturais diferenças do carnaval de hoje e de quarenta anos atrás. Duas diferenças são as mais visíveis. Primeiro, os sambas de hoje possuem uma supremacia do descritivo em relação ao musical, tendo o samba a imperiosa necessidade de retratar a totalidade do enredo, na sua apresentação de desfile, enquanto os antigos sugeriam uma livre interpretação sobre o espírito em si do enredo, até porque antigamente os sambas eram criados sem um enredo preestabelecido, ou seja, primeiro era escolhido o samba, e em seguida o enredo era desenvolvido a partir do samba. Segundo, em termos do ritmo e da cadência do samba, em que hoje os sambas têm um ritmo muito mais acelerado que antes.

As reedições estão sendo muito comentadas em relação ao samba-enredo, mas é importante perceber que não se restringem a ele: na verdade, a iniciativa é de reviver os antigos carnavais, os desfiles clássicos de cada escola. Ou seja, a revisitação não é exclusivamente musical, mas também envolve a parte visual. Os carnavalescos terão o desafio de recompor o enredo aos moldes dos desfiles atuais a partir de uma “sinopse” dada pela letra do samba antigo. Em que medida a iniciativa terá repercussões na parte visual continua sendo uma incógnita.

As possíveis comparações entre o aspecto visual e o musical dariam um capítulo à parte. Basta lembrarmos que enquanto a concepção visual do desfile será fundamentalmente atual, o samba-enredo será o da época do desfile original, o que inserirá um inevitável desequilíbrio entre o visual e o musical. É só tentarmos imaginar o que seria um desfile com um samba de hoje e com as alegorias e fantasias antigas para imaginarmos o reverso da questão.

E em relação ao samba-enredo, que é o que nos interessa, quais são os pontos favoráveis e os desfavoráveis da reedição?

Quanto aos pontos desfavoráveis, o principal é interpretar a idéia como mero saudosismo passadista, incutindo um conceito retrógrado e preconceituoso que prega que “o verdadeiro samba-enredo morreu, não é feito mais”, “o samba-enredo faz parte do passado”, etc, etc. Devemos ao contrário lembrar o que disse o sábio Paulinho da Viola, “eu não vivo no passado; é o passado que vive em mim”. É preciso perceber que o compositor de hoje tem restrições bem maiores em seu processo de criação: o samba precisa seguir meticulosamente uma sinopse, o processo de escolha do samba é longo e bem mais dispendioso, etc. Esta coluna poderia aproveitar o ensejo para colocar algumas reflexões sobre as diferenças deste processo no passado e hoje, mas o assunto é delicado, e merece ser tratado à parte. Em linhas gerais, apenas vale citar que enquanto antes o samba era essencialmente amadorístico, hoje convivemos com a mercantilização do samba-enredo, e sua semi-profissionalização.

O risco das reedições é levar as pessoas a concluírem que ela foi feita porque “o samba atual não presta” ou que “samba hoje é tudo igual”. Mas se isso é absurdo, não se pode negar que o samba-enredo hoje precisa de uma “oxigenação”, uma “injeção de ânimo”, precisa encontrar novos caminhos e soluções.

Isto porque atualmente o samba-enredo não é mais decisivo para ganhar o Carnaval: eis a suma síntese da primazia do visual sobre o musical ao longo de tantos anos. A visão do samba-enredo é puramente pragmática. Não se precisa mais da qualidade musical: se a escola desfilou bem com um “samba-trash”, ele “cumpriu seu objetivo”, que é supostamente o de fazer a escola desfilar bem, e por isso ganha nota dez. Essa visão, praticamente consolidada, pode tornar o samba-enredo como gênero musical autônomo completamente dispensável. O samba não é mais visto a partir de sua qualidade musical, e sim como mero instrumento para a escola conseguir um melhor resultado. Ou seja, segundo a nomenclatura da coluna anterior, a ênfase é do samba-enredo na vertente pragmática.

Nesse sentido, ano passado tivemos algo perigosíssimo: os fracos sambas da Imperatriz e da Mocidade perderam pontos irrisórios no quesito samba-enredo, e as escolas tiveram boas colocações, chegando a participar do desfile das campeãs. Isso só reforça a constatação de que a qualidade musical do samba é completamente supérflua para a classificação final da escola.

Por isso, as reedições, e especialmente, as notas de samba-enredo que serão dadas às reedições, podem dar um novo fôlego ao caráter musical do desfile das escolas de samba, no sentido de lembrar às escolas que samba-enredo de qualidade vale ponto, e romper com uma perigosa idéia que samba bom e melodioso é “grande, cansativo, e não empolga”, e que o bom samba é o que puramente faz “a escola desfilar bem”.


Os sambas reeditados

Como, segundo nosso cronograma, temos apenas duas colunas para falar dos sambas do Grupo Especial, é preciso ainda falar sobre os sambas reeditados em si, mesmo correndo o risco de tornar essa coluna gigantesca. É o que faremos a seguir.

1 – Império Serrano

Para o Império Serrano, a reedição veio no momento certo: era a oportunidade de resgatar o “orgulho imperiano”, sua enorme tradição e seu passado de glórias. “Aquarela Brasileira” foi o samba escolhido por inúmeros fatores: é um samba de exatos quarenta anos atrás (1964), extremamente conhecido de todos da escola, e realizado pelo principal compositor da escola e quiçá da história do samba-enredo, Silas de Oliveira. A Aquarela, descrevendo as regiões do território brasileiro, pode proporcionar um enredo de fácil abordagem, mais leve que um assunto histórico. O samba tem uma maior fluência rítmica que outros clássicos da escola, como Heróis da Liberdade ou mesmo Cinco Bailes Tradicionais na História do Rio, facilitando o canto e especialmente a adaptação da bateria.

Aquarela Brasileira é o samba de formato mais clássico dentre os que serão reeditados. Típico samba-enredo dos anos 60, é um samba mais longo e praticamente sem refrões. Praticamente, pois ao final o “lalalaiá” não chega a ser um refrão de fato. Após quarenta anos, Aquarela resiste bravamente, e se destaca a discrição e a poesia do samba-enredo. Em comparação com outros sambas da época, Silas de Oliveira é econômico nos adjetivos, evitando as “palavras de purpurina” (na expressão de Rachel Valença). Apresentando seu samba numa forma narrativa, que descreve as visitas a cada região como uma verdadeira viagem ao redor do Brasil, Silas exibe sua opção de forma brilhante quando compara o asfalto da passarela a uma tela em que surgirá nosso país. Toda a letra é coroada por um tom saudosista e romântico, mas repleto de poesia, com passagens como “feitiço de garoa pela serra” ou “mulatas de requebros febris”.

A melodia do samba se destaca por ser toda composta num leve e sutil crescendo. É como se paulatinamente, à medida em que o autor conhece as regiões do Brasil, seu encantamento se tornasse cada vez maior, a ponto de se tornar irresistível. O mais emocionante é que o ápice desse encantamento acontece na parte final do enredo, quando há uma síntese de tudo o que foi apresentado, justamente no verso “Brasil”. Os cinco versos a seguir são os mais agudos do samba, concluindo quase em euforia que o país é um verdadeiro paraíso tropical, focando nas belezas naturais (as matas e o céu). Ao fim, o suposto refrão apresenta uma inteligente solução de transição para a parte inicial do samba, novamente mais grave, e esclarece a essência do samba: ser no fundo um samba de exaltação, em que o autor canta livremente seu radiante “lalaiá” em homenagem ao país.

2 – Portela

A Portela optou pelo samba de 1970, o último ano em que a escola foi campeã sozinha, sem dividir o título com outras agremiações. Em “Lendas e Mistérios da Amazônia”, que chegou a ser gravado por Chico Buarque, os autores conseguiram inserir um clima de mistério, surpresa e poesia que permeia todo o samba. Assumindo o tom de uma lenda (“dizem que os astros se amaram”, “e dizem mais”), tornando todo o samba uma grande fábula em forma de narração, o samba se destaca, em termos de melodia por um conjunto de tons graves que subitamente se combinam por agudos, mais ao final do samba. Os primeiros oito versos são praticamente no mesmo ritmo, dando ao samba um tom monocórdico e repetitivo, na estrutura ABABABAB em termos de melodia. No entanto, a melodia é completamente surpreendente para um samba-enredo, num tom grave e ambíguo em que o verso B funciona quase como uma resposta ao A, o que nos leva a pensar na primazia de um instrumento como a cuíca, dando à primeira parte um ritmo todo particular. Na segunda parte, no entanto, o samba se transforma com uma melodia mais aguda, que culmina a partir do sugestivo verso “Quando chegava a primavera”. Após esta “primavera”, o samba fica extremamente colorido e singelo, e só então compreendemos que a primeira parte é tão austera porque se concentra na parte do mistério, dos astros e do pranto. Ao final, surge um refrão completamente místico e absolutamente intuitivo, que coroa a aura de mistério, sedução e poesia de todo o samba. Em uma perna só, em seu gingado imperfeito e maravilhoso, o Saci Pererê é visto como se sambasse, em seu gingado sedutor, malandro, marginal e ingênuo, legítima representação do Carnaval e do sambista.

3 – Viradouro

Após uma longa indecisão a Viradouro resolveu reeditar a Festa do Círio de Nazaré. A princípio, com patrocínio do estado do Pará, a escola lançou sinopse para um enredo próprio, chegando a abrir a disputa para a escolha de um novo samba. Dentre eles, dois sambas se destacavam: o primeiro, assinado sozinho por Dominguinhos do Estácio, e o segundo, assinado pela mesma parceria campeã em 2003, em que Gustavo e Gilberto Gomes disputavam nada menos que o heptacampeonato na escola. Após algumas apresentações, o presidente Monassa anunciou o fim da disputa, e a eleição do samba da São Carlos de 1975.

O grande desafio do samba da São Carlos de 1975 é tornar sua estrutura uma verdadeira procissão. Nesse sentido, seus quatro primeiros versos estão entre os mais exemplares da história do samba-enredo: numa mistura de ladainha com um canto de lamento, num vigoroso tom menor, o samba explora a repetição como reflexo do gradual caminho do fiel em direção ao monumento santo. É nesse processo de peregrinação mística que o samba prossegue, culminando no segundo refrão, trabalhando com a própria idéia de oração no interior do samba. Na segunda parte do samba, no entanto, os autores procuraram situar a festa em seu “em torno”, situando-a como parte da economia, cultura e hábitos do local, que se vê então transformado com a presença da festa. Em contraposição ao ritmo lento e monocórdico da primeira parte, a segunda é repleta de versos ligeiros, em que as sílabas quase se embolam para espelhar a agitação frenética e a multiplicidade do local. Ao final, num refrão quase impensável, os autores conseguem listar um conjunto de comidas típicas de difícil entonação, num ritmo simples e envolvente, resolvendo com maestria uma composição de grande dificuldade técnica.

4 – Tradição

A Tradição optou por reeditar o samba da Portela, após verem fracassadas as negociações para homenagear a apresentadora Hebe. A decisão foi essencialmente política, em mais uma genial estratégia do polêmico Nésio Nascimento. Estrategista, Nésio rapidamente concluiu que a reedição seria a forma mais simples para a escola permanecer no grupo, já que a idéia é totalmente simpática à Liesa. Como a idéia surgiu em homenagem aos 20 anos da Liesa, Nésio escolheu um samba exatamente de 1984, quebrando a regra de reeditar um samba pré-sambódromo, e causou enorme polêmica por escolher um samba justamente da Portela, de onde a partir de uma dissidência surgiu a Tradição. A decisão de Nésio foi brilhante por inúmeros motivos. Primeiro por buscar um samba de inegável apelo popular cujo ritmo praticamente não sofrerá alterações com o atual ritmo da bateria. Segundo por promover uma reaproximação com a Portela, motivando de forma impensável seus componentes, unindo a agremiação e sua comunidade, e resgatando um elo que pode ser extremamente positivo para suas próprias ambições particulares, no momento em que Carlinhos Maracanã acena para finalmente deixar o comando da escola.

Há sambas que se tornam clássicos por refletir de forma incontestável um certo imaginário coletivo. É o caso deste samba da Portela de 1984. Se analisarmos o samba em si, em termos da letra e da melodia, concluiremos que é um samba convencional, até abaixo da média dos sambas compostos naquele ano. Mas o diferencial de Contos de Areia talvez seja o de que o enredo trata de três grandes pilares da história da Portela: Paulo da Portela, Natal e Clara Nunes. Ao invés de o samba ser de uma abordagem respeitosa, extremamente carinhosa e saudosista, os compositores buscaram o oposto: um samba que pudesse refletir o legado dessa trindade, a essência em carne, sangue e alma do que é ser portelense. Em uma única palavra, o “axé” que emana da Portela. Por isso, tamanha foi a felicidade dos compositores que é um samba de impacto direto e inevitável: sem se preocupar com qualquer rodeio que pudesse distraí-los de seu objetivo último, os dois autores, totalmente integrados ao espírito portelense (Norival Reis, autor simplesmente de Ilu Ayê, e Dedé da Portela, compositor e intérprete de longa data da escola), criaram um universo simbólico de enorme energia e apelo popular. Simples, de versos curtos, com três refrões envolventes, não deixa também levemente de mostrar sua sensibilidade e poesia (“Um mundo azul e branco / o deus negro fez nascer”, “Portela é canto no ar”, “na ginga do estandarte”). Contos de Areia conseguiu principalmente ser um samba que reflete em sua essência o que é ser portelense, e por isso tornou-se um dos mais executados sambas da escola.


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Após se concentrar na safra do Grupo Especial de 2004, focando na questão da reedição dos sambas antigos, e na análise dos quatro sambas reeditados, a próxima coluna se voltará para uma análise cuidadosa das demais dez composições do Grupo Especial de 2004. Até lá.


Marcelo Ikeda.
18/12/2003.