2/16/2009

Coluna - num 2

Coluna número dois – a safra do Grupo Especial de 2004: os sambas não-reeditados


Conforme “prometido” na coluna anterior, nesta iremos nos debruçar mais a fundo sobre os sambas das dez escolas que optaram por enredos originais, isto é, as não-reedições. Seguiremos a ordem do CD.


1) Beija-Flor

A Beija-Flor comprova sua importância em termos musicais no Carnaval atual com o melhor samba entre as não-reedições. E isto porque havia ainda na equilibrada disputa na Beija-Flor pelo menos mais dois sambas de mesmo (senão de melhor) nível que o escolhido ( o de Aloísio Villar e parceiros, e o de Wilsinho Paz e parceiros). No impasse interno que se seguiu após a suposta preferência de Laíla pelo samba de Serginho Sumaré, ninguém menos que Neguinho da Beija-Flor acabou sendo fundamental para a virada na reta final, e a vitória do samba de Cláudio Russo e parceiros.

Desde a entrada da Comissão de Carnaval, e o campeonato no desfile de 1998, a Beija-Flor promoveu uma pequena revolução no Carnaval Carioca, tanto em termos visuais quanto musicais. Com isso, a Beija-Flor alcança uma identidade musical, baseada em sambas de andamento mais cadenciado e melodias com contornos mais trabalhados. Neste samba sobre a Amazônia, não é diferente, e a única passagem que soa abaixo das demais é o refrão final, com uma mensagem educativa que beira o didático (“Se Deus me deu, vou preservar / Meus filhos vão se orgulhar”).

O grande achado deste samba é sua distribuição nos versos a partir de sílabas tônicas com diferentes aberturas vocais. Todos os versos são entrecortados por sílabas fortes que são ora abertas (<á>, <é>, <ó>) ora fechadas (<ã>, <ê>, <ô>, <í>, <ú>), provocando uma alternância extremamente favorável à melodia. O ponto típico desta estratégia está no refrão do meio. Abaixo podemos ver a estratégia de rima dos compositores, equilibrada com sílabas tônicas de outras aberturas (usa-se do <á> até o <ú>). A metrificação também é perfeita, sendo na verdade um verso de cinco seguido de um de doze, duas vezes (assinalado por / )

"Eh! <ê> Manôa <ô> /
Minha canoa <ô> vai cruzar <á> o rio-mar <á> /
Verde <ê> paraíso <í> / é onde Iara <á> me seduz <ú>
com seu cantar <á>

Esta observação pode ser feita para quase todo o samba, como por exemplo, o final da primeira parte:

Brilhou <ô> o Eldorado, <á>
No co <ô> ração da mata <á> as guerreiras <ê>
Bele <ê> zas naturais, <á> rique <ê> zas minerais <á>
O rei <ê> no de Tupã <ã> ergue a bandeira <ê>

Outros achados em termos de letra merecem ser destacados, como “A lágrima que o trovão derramou”, ou especialmente em “água que lava minh´alma”, em que a melodia atinge seus acordes mais líricos, apenas para no verso seguinte retornar a estrutura com vogais mais fechadas (“ao matar a sede <ê> da população <ã>”), como recurso típico deste samba.

É essa articulação entre letra e melodia que torna este samba da Beija-Flor o mais bem sucedido dos sambas não-reeditados.


2) Mangueira


Equilíbrio e intimismo: Cadu e sua “estética do artesanato”

“Eu não vivo no passado; é o passado que vive em mim”
Paulinho da Viola

Após três anos em que foram derrotados na final, Cadu e seus parceiros finalmente venceram a disputa na Mangueira com relativa facilidade (a decisão na final foi quase unânime) em sua quarta final consecutiva. Este samba é uma espécie de síntese da visão dos compositores sobre o gênero, e ao mesmo tempo consolida sua progressiva evolução, sendo o samba mais trabalhado da parceria.

Para Cadu, não se trata de fazer um samba de invenção: sua proposta é trabalhar de forma incansável e minuciosa dentro dos estreitos limites do gênero. É um samba mais de transpiração que de inspiração, o que de forma alguma significa um desmérito: é nítida a preocupação dos autores em buscar a palavra mais exata, o acorde mais perfeito, o tom exato. Dessa forma, a grande chave que sintetiza a impressão causada pelo samba é o equilíbrio. É essa obsessão pelo acabamento que cristaliza a “estética do artesanato” dos compositores.

Mas quem pensa, a partir dessas linhas, que se trata de mero acabamento mecanicista está muito enganado. Por trás de sua aparente estrutura que beira o convencional, desvela-se como nítida expressão pessoal, e daí resume a incrível sutileza desse samba. (E daí lembramos os recursos de uma arte que luta intensamente para esconder seus supostos vestígios de expressão pessoal, mas que acaba paradoxalmente por revelar-se - ou seja, a estética classicista, desde um filme de Howard Hawks até um romance de Tolstoi...) .

Sua expressão autoral está na leitura do enredo pelos autores como uma inevitável expressão de saudade e melancolia. Nesse enfoque, tudo se encaixou plenamente ao estilo dos autores de preferirem os meios-tons e a chave em tom menor. O início do samba, numa espécie de “flashback”, já evidencia a estratégia dos autores: é a partir da herança partida do hoje que se olham as maravilhas do ontem. Nesse passeio íntimo pelas riquezas de Minas, seu olhar pelo passado nunca é meramente saudosista e antigo (apesar de claramente tender a isto), mas se conjuga sutilmente com a necessidade do presente. Vejamos a estratégia dos autores em seu refrão do meio:

“Por belos recantos, andei
Das suas águas provei
De mansinho, eu peço passagem
A Mangueira vai seguir viagem”

Os dois primeiros versos tratam das belezas do passado; o terceiro, reforça o tom de intimidade e sutileza que já existia nos dois primeiros versos. Mas o quarto é o mais elucidativo: mostra que mais que simples viagem ao passado, é um pequeno estudo sobre o papel do tempo. Seguindo a viagem pelos recantos, os autores mostram que a vida precisa continuar, que não se pode viver eternamente no passado, que o trem precisa seguir até o seu destino final. No fundo não deixa de ser triste, porque revela que é impossível permanecer lá para sempre, ou seja, não deixa de ser um olhar humilde sobre a fugacidade da vida.

Todo o samba se estrutura na idéia do percurso e na problematização da revisitação do passado. A primeira estrofe apresenta a questão de forma bastante sugestiva (“A estrada do sonho” / “Real desejo de poder e ambição”). Com “a estrada do sonho”, os autores resumem toda a idéia de percurso que caracteriza o samba, além da visão do passado como refúgio idílico impossível. Mas no verso seguinte, o “real desejo” traz de volta a importância da realidade (e a estrada é conhecida como “estrada real”...)

Por fim, em duas partes o samba coroa a fusão de presente e passado e sua estrutura do percurso com uma idéia de destino. A primeira, mais descritiva, é em “eu chego ao Rio com certeza”. Mas a segunda é mais poética, uma das chaves de elucidação do discurso dos autores: “As trilhas bordadas em ouro / levaram tesouros a caminho do mar”. A ambigüidade dos versos revela a sutileza desse samba: por um lado, um recurso negativo, já que a chegada ao mar representa o escoamento das riquezas para fora do país, uma perda de identidade. Por outro, positivo, já que o percurso e a viagem acabaram sendo bem-sucedidos. O mar surge, então, com inevitável força, como elemento simbólico, valorizado pela melodia, que ganha contornos mais líricos. É em direção a esse mar, como síntese entre o exílio e o encontro, que segue todo o percurso do samba por um rastro de passado perdido.


3) Grande Rio

Bicampeões, o samba de Mingau e cia. para 2004 não possui o mesmo vigor melódico que o samba de 2003. A tentativa a princípio parece a mesma: apresentar à Grande Rio um samba com uma roupagem melódica mais requintada, repleto de meias-pausas e variações melódicas para o agudo que beneficiem o estilo de Wander Pires. Mas desta vez, o enredo dificultou, e o tom acabou beirando o didático e o convencional. É certo que pelo menos a Grande Rio não virá para a Avenida com um samba trash, cheio de tiradas ambíguas e tendendo para o apelativo, seja em termos de letra quanto em melodia, e nessa escolha se ressalte o perfil criado pelos compositores, que tentam criar um relativo bom gosto. Mas se isso pode parecer muito em termos do que estava em jogo (isto é, do que o samba poderia acabar sendo) acaba sendo muito pouco em termos do que realmente é. No duro no duro acaba sendo um samba sofrível, especialmente em termos de letra, e com diversos problemas de acabamento, cheio de versos incompletos ou com sílabas frouxas (“quero ter pra ver / o milagre da vida acontecer”, “faz meu sonho real”, “fique sabendo”, “meu bem, lições de amor”, ...)


4) Imperatriz

Após o desastroso samba de 2003, a Imperatriz retorna ao seu estilo tradicional de samba: uma samba leve, de versos curtos, repleto de meias-pausas, com uma melodia fácil mas requintada, extremamente sintética em termos de leitura do enredo. Os compositores foram muito felizes em traduzir um enredo de leitura complexa de forma agradável e objetiva. Samba discreto, sem nenhum trecho com uma melodia de acordes mais agudos (nem mesmo nos refrões, e talvez especialmente neles...), revela seu refinamento e seu estilo cadenciado especialmente na segunda parte. Nela, os quatro primeiros versos introduzem de forma lírica a participação de Cabo Frio no enredo, resolvendo a dificuldade técnica da introdução de “Vespúcio” no samba. Em seguida, uma ligeira quebra, típica dos sambas do Guga, em “depois partiu com nosso pau-brasil”, para logo depois retornar ao estilo mais cadenciado próprio da escola.

Ao final, um recurso quase atípico dos sambas atuais: uma espécie de epílogo, com quatro versos antes do refrão principal, que insere um clima de contemplação passiva e de deslumbramento extremamente sugestivos.

Equilibrado e lírico, este samba da Imperatriz acaba se destacando por sua discreta poesia e sua leitura fácil e sintética dos sempre complicados enredos de Rosa Magalhães.


5) Mocidade


Os sambas-cartilha de Santana e Ricardo Simpatia

Depois dos enredos sobre a paz universal e cia. e da façanha de realizar um dos enredos mais impensáveis da história do Carnaval – a doação de órgãos – a Mocidade resolve fazer uma campanha contra os acidentes de trânsito, chegando inclusive ao descalabro de usar a figura de Ayrton Senna para mostrar ao povo como a alta velocidade provoca vítimas. Em prol do politicamente correto e das campanhas de utilidade pública, a Mocidade com estes dois enredos está para o que foi a Beija-Flor no início dos anos setenta, com seus enredos sobre o Mobral e o Brasil do ano 2000.

A síntese do discurso reacionário, burocrático e didático que busca a Mocidade está nos sambas de Santana e Ricardo Simpatia. Se em Villa Lobos, a dupla ainda consegue instantes de poesia, apesar de irregular, o novo discurso da escola parece ter se encaixado à perfeição no estilo dos compositores. Recheado de imperativos categóricos, permeado de acordes evangélicos que remetem a uma idéia de limite tênue entre vida e morte e de um sentido de missão/redenção, a dupla de compositores parece querer inaugurar uma nova linha – melódica e estilística – na safra de sambas-de-enredo atuais: o samba-cartilha. Torna-se assim pior que os referidos sambas da Beija-Flor, já que estes apenas descreviam as "glórias do Governo", enquanto os da dupla não apenas descrevem, mas sugerem que quem ouça passe a ter um certo tipo de padrão de comportamento. Se pensarmos que o Carnaval é por excelência a época da "inversão", da saudosa malandragem, da revisão dos padrões politicamente corretos, da critica aos costumes, o Carnaval da Mocidade pode ser considerado o "anti-Carnaval", e a verdade é que os sambas de Santana e Ricardo Simpatia são o hino perfeito para esse Carnaval possível: didáticos, burocráticos, reacionários.


7) Salgueiro

O samba do Salgueiro é – por incrível que pareça – o mais complexo samba da safra 2004, pois para ouvi-lo corretamente, é preciso estar bastante atento não só aos últimos desfiles da escola, mas conhecer a fundo a trajetória do grupo de seus compositores e de seus “arredores”.

Cada verso e cada acorde deste samba estão envoltos em um sinal de perplexidade, ou melhor, em uma redoma de impossibilidade. Seus compositores são de um grupo dos mais talentosos do samba-enredo atual (e não é à toa que chegam ao tricampeonato - aliás inédito - numa escola do porte de um Salgueiro). No entanto, aqui, não se trata de talento nato (lembramos de Gusttavo e cia. ), não se trata de inspiração. Ao contrário, trata-se de negar a qualquer custo qualquer vestígio de uma aptidão natural, qualquer rastro de espontaneidade. O que se busca é exatamente um samba de laboratório, o que se quer é a “fórmula do samba de embalo” perfeito para o desfile oba-oba do Salgueiro, o que se deseja é aperfeiçoar o processo logístico da apresentação na quadra e da eliminatória dentro do Salgueiro. Seu produto é a negação do samba-enredo nos termos em que dizia Monarco (“o samba não é do morro nem da cidade; samba é tudo o que vem do coração”) para a implementação do supra-sumo do samba competitivo, do samba de resultados.

Mas quando analisamos a fundo este samba do Salgueiro – e este samba em particular mais que os dois anteriores –, o que só foi possível graças ao andamento lento da gravação do CD, percebemos que toda essa reação é quase uma atitude de criança que, acuada ao brigar com seus amigos de rua, acaba encontrando os estudos como único refúgio. Percebemos que todo o samba é um canto de lamento, que em todos os seus acordes ressoa um desejo profundo de que as coisas fossem diferentes, sendo uma das mais contundentes reflexões sobre o atual estágio dos desfiles das escolas de samba. E pensamos no fato de que os compositores vieram da Vila Isabel, escola de magníficos sambas que sucumbiu, entre muitas outras coisas, diante da recusa em apresentar um Carnaval de resultados; lembramos que o líder deste grupo de compositores (ainda que prefira não assinar o samba) é um enorme talento da “jovem guarda” que assinou sambas históricos da recente safra da Vila.

E é quando todas as intenções deste samba começam a se desvelar, e ainda que se queira a qualquer custo negar o talento e a inspiração, que se queira afirmar que o romantismo e a inocência morreram, eles estão lá, ainda que timidamente. É quando surgem os maravilhosos quatro versos, desde “E mesmo sem destronar o ouro negro” até o ápice do antigo estilo melódico dos compositores “Sonho, vê-lo enfim em seu reinado” (comparem com “Vila, querida, guerreira, tua coroa hoje é cocar” ...), quando todo o estilo de quimera se materializa perfeitamente ante a impossibilidade presente dos compositores. Ou ainda nos dois dos mais brilhantes versos deste Carnaval (“Negro, do açúcar mascavo / Branco toque refinado”), em que, através da transformação do açúcar mascavo em refinado, faz-se uma metáfora perfeita e concisa da essência negra do Carnaval e sua tentativa em “refiná-lo” (a “cobiça holandesa”) – observem o som gutural e sofrido como a melodia valoriza as sílabas em “Negro”, ou ainda pequenos achados perdidos no samba (o emprego das palavras “cana” e “Canaã” em seqüência, a expressão “academia é doce seu cantar”, ou “infinito alvorecer”, etc.)

Ainda que se possa apontar o grupo de covarde por resignar-se às regras atuais do Carnaval ao invés de lutar contra elas, e até mesmo por levá-las contra a própria Vila Isabel, é preciso ver toda a questão de forma mais ampla, pois ela é bastante mais complexa. E é desta forma que este samba do Salgueiro reflete o desejo dos compositores de fazer um samba possível dentro de uma conjuntura atual do Carnaval em que o samba é apenas um acessório de um comércio. “Se não podemos contra eles, que sejamos por eles”, como único jeito de também se beneficiar com as regras do jogo. No entanto, o que nos parece profundamente comovente neste samba em particular é uma consciência profunda de que este samba não é “nem melhor nem pior” que os outros, é apenas o samba possível.


9) Tijuca

Após dois anos de sambas extraordinários, o samba da Tijuca para 2004 deixa a desejar, e acaba refletindo um certo espírito de crise interna na escola após o decepcionante resultado do aguardado Agudás. E não por culpa do enredo, que é um dos mais interessantes deste Carnaval, uma releitura do Renascimento a partir de um confronto entre ideal e realidade, sonho e ciência. Apesar de alguns achados em termos de melodia (especialmente em “é tempo de sonhar”), que possui contornos inventivos, o samba sucumbe por sua falta de estrutura interna, e pelo seu tom primário em termos de letra. Em primeiro lugar, as inúmeras repetições (a palavra sonho e derivados aparece cinco vezes, “viajar” e “lutar” duas vezes, “com a Tijuca” e “eu vou” duas vezes). Em segundo, a falta de criatividade na estrutura dos versos, que na maior parte das vezes se limitam a listar um conjunto de verbos e substantivos como se fossem palavras-chave, mas sem nenhuma articulação entre eles (substantivos: “de sonhos e criação / desejos, transformação”, “profecia, loucura, magia”, “a lua, a terra e o mar”; verbos: “acreditar, desafiar, superar os limites do homem”, “querer voar e flutuar”, “quero desvendar, levar”). Isto se reflete nas rimas, em geral muito pobres, com absoluta ênfase na terminação em “ar”. No entanto, alguns versos, em que a terminação provoca um certo tom de reticências, dão ao samba um certo charme melódico que estimula o canto (“a lua, a terra e o mar”, “desvendar, levar”, e o belo verso “o velho sonho de ser imortal”). No entanto, toda a possibilidade que abria o enredo para um samba que incorporasse em sua estrutura uma idéia de sonho articulada com uma idéia de trabalho concreto e rotineiro acaba despedaçada pelo absoluto aspecto primário da composição do samba. No entanto, talvez permaneça como a maior incógnita entre os sambas de 2004 em termos de sua repercussão na Avenida.


11) Caprichosos de Pilares

Um samba de um ícone popular como a Xuxa e vindo de uma escola como a Caprichosos, que sempre preferiu sambas fáceis ou as “neo-marchinhas”, poderia seguir muitas opções: ser um samba puramente de empolgação e alegria, ou uma abordagem infantil no sentido de ser quase didática, ou ainda uma espécie de colagem de expressões típicas da apresentadora e de suas músicas (com abuso dos “xis”), etc. Mas os compositores surpreendem porque seguiram o caminho mais fácil e o mais difícil, e daí a surpresa desse samba. Ainda que dentro de todas essas opções – e em certos trechos cada um desses aspectos pode ser claramente identificado – e de tudo o que se poderia esperar de um samba com um enredo como este, os compositores conseguiram sua coerência por apostar em um samba simples mas de bom gosto melódico, e, acima de tudo, por realizar um samba em que uma visão de melodia suplanta a necessidade decorativa da letra.

Humildes, os compositores optaram por uma samba repleto de meios-tons e contornos melódicos atípicos de um samba mais popular ou de empolgação. Todo permeado por uma bossa envolvente, com pausas que facilitam o canto e a bateria e, especialmente na primeira parte, por versos de passagem em tom menor, o samba inclusive chega a usar (na metade da primeira parte) uma estrutura de letra que nega o “ABAB”, ou seja, a rima imediata. Em termos de melodia, os contornos mais atípicos estão na segunda parte, em que – exemplo cada vez mais raro nos sambas desta década – o descritivo sucumbe ao melódico, especialmente no emprego do “ah!” ao começar o primeiro verso.

Em termos de letra, o samba tem duas passagens memoráveis. Já pelo título, o enredo é claro: o reino encantado da Xuxa tem relações diretas com o Carnaval, já que o Carnaval é época da valorização da imaginação e do sonho. Pois bem, os quatro primeiros versos fecham a questão de forma absolutamente sintética. “Pilares é festa / já tô no reino encantado, amor”. O Carnaval é como uma festa infantil, ou ainda como “um reino encantado”. “A lua a brilhar ... sonho de cristal”. Mais uma evocação do desfile da escola (à noite) com o cenário da festa popular, e a questão da encenação (“brilhar”, “cristal”) e da fantasia e da imaginação (“lua”, “sonho”). E enfim, os versos que explicitam a síntese: “Xuxa, Caprixosos, Carnaval”.

Ao final da segunda parte, a questão retorna de forma mais sutil, ganhando um contorno quase místico. Ao falar da paz como forma de energia, os compositores tornaram a questão concreta quando “vestir-se de azul e branco” se associa à própria manifestação carnavalesca. Em contraste com o penúltimo verso, longo e contínuo, o último verso insere uma quebra, com magras quatro sílabas e um tom menor, de contorno bastante austero. A “fantasia” traz de volta o Carnaval: ela é o espelho de uma atitude carnavalesca que, ao recriar a possibilidade de um mundo da imaginação e de transfiguração subversiva da realidade, canaliza a esperança de um mundo de paz e nova energia.

O ponto fraco deste samba é sem dúvida o refrão do meio. Além de ter uma melodia repetitiva (a estrutura dos dois últimos versos é exatamente idêntica à dos dois primeiros), é um pastiche do refrão do meio da Caprichosos em 2000. Comparem:

“Se a vida é um xou (A) /
Tá no ar a magia (A) / de viver (B)
Tira o pé do chão (A) /
Hoje tem alegria (A) / ilariê” (B)
(Caprichosos 2004)

“O violão (A) / a bossa nova (A) /
Uma canção do rei (B) /
Um hippie (A) / sem compromisso (A) /
O coração, a lei” (B)
(Caprichosos 2000)

A melodia é idêntica; a única diferença é no tamanho dos versos. A estrutura é AABAAB. Enquanto em 2000, A tem quatro sílabas e B, seis; em 2004, é o contrário: A tem seis sílabas e B, quatro. Mas a cópia ainda foi tão mal feita que na parte “de viver” uma sílaba ficou faltando (vejam, “ilariê” tem quatro), e a saída foi postergar o “de”. Bom, se bem que em 2000, no verso “um hippie” também falta uma sílaba...

Mas ainda há uma parte que sinaliza muitos dos objetivos desta modesta composição: o refrão principal. Ápice da visão afetiva e humilde dos compositores, de seu olhar infantil como reflexo de uma ingenuidade, o refrão cresce muito na bela gravação do CD em que o coro das crianças quase abafa a voz de Jackson Martins, e desvela a idéia de que, nesse “Carnaval encantado”, é preciso a participação de todos. E vem um verso-síntese, um “refrão-desabafo” (remeto com a expressão ao efeito do refrão principal da Tuiuti 2004), cuja força de expressão é muito mais autêntica que o medo formalista da repetição (e com isso lembra o samba de Lequinho e Amendoim não-escolhido pela Mangueira em 2003 “eu sou feliz... eu sou feliz!”): “Xuxa, eu te amo, eu te amo, meu amor”.


12) Porto da Pedra

Apesar de irregular, o samba do Porto da Pedra dá sua contribuição nesta safra por se debruçar sobre a questão do ritmo no samba-enredo atual. Assim, propõe-se a ser uma mescla entre um samba mais leve, de expressões fáceis e ligeiras, com um samba de molde mais clássico. Num certo sentido, portanto, sua proposta não é muito diferente da do samba da União de Jacarepaguá de 2003, em que dois refrões fortes eram contrabalançados por um samba de miolo clássico, com versos longos e cheios de proparoxítonos. Este samba do Porto da Pedra, no entanto, está longe de ser formalmente tão elaborado quanto o de Jacarepaguá, mas impressiona em primeiro lugar por sua concepção atípica de estrutura. Seu estilo descritivo, de versos longos, com descontinuidades rítmicas, com uma longa introdução, atinge o ápice na primeira parte, quase totalmente sem rimas, com alguns achados, como a ambígua pontuação em “você é meu porto (.) da pedra te enviei”, ou ainda da original pausa melódica antes do crescendo em “revelar”. O bom gosto, seja melódico, seja da letra, se faz presente em diversas partes (melódico em “eu fui a voz de antigas civilizações”, de letra em “senhores com brasões engalanados”, etc.), ou em quase todo o início da segunda parte. O ponto alto do samba é o belíssimo verso “no sorriso largo de um moleque fui recado”. Esse requinte é quase atípico do enredo que beiraria o trash, com a necessidade de citação da internet e os “arroba ponto com” da vida.

Mas o samba de molde clássico também precisa parecer moderno, precisa ter uma roupagem mais adequada. E aí surgem trechos de gosto duvidoso (o “vem, vem” logo de início, ou “levar pra lá e trazer pra cá”), como todo o final da segunda parte, com cinco “tô”, e um verso insípido como “eu tô na boa, antenado, é carnaval”. Na dificuldade de conciliar essas duas tendências, o samba do Porto da Pedra parece completamente irregular, e vem provocando uma reprovação quase geral. No entanto, por outro lado, é uma escolha corajosa, já que o samba tende a um andamento mais cadenciado que a média dos sambas atuais. Ainda assim, o samba é longo, e em algumas vezes se arrasta, o que pode provocar um desequilíbrio para a harmonia da escola. Seu resultado parece, no entanto, menos importante que a tentativa, e mantém sua contribuição no sentido de um reforço de um estilo mais melódico e elaborado em detrimento do trash de consumo imediato.


14) São Clemente

Neste ano, quando a São Clemente retorna ao Grupo Especial, a escola resolve apostar novamente num enredo crítico, após anos em que a escola retornava ao Grupo Principal com enredos completamente fora de suas características (de Rui Barbosa a Guapimirim). O tom irreverente encaixou como uma luva no estilo nada discreto do carnavalesco Milton Cunha, e o mais importante é que a escola fez as pazes consigo mesma, e novamente a São Clemente recupera sua identidade carnavalesca. Isso se reflete diretamente no aspecto musical. O samba-enredo escolhido pela escola não é um primor em termos musicais, ou de melodia, não é um samba de invenção. Mas isso pouco importa em relação ao fato de que a São Clemente afinal consegue restabelecer um contato com sua identidade musical, com sua essência carnavalesca. Até porque o estilo leve e despojado da São Clemente nunca proporcionou sambas-enredo clássicos. Ao contrário, o padrão da escola sempre optou pelo viés despretensioso e alegre, e seus sambas sempre optaram pelo tom crítico que se espelha melhor através da letra que da melodia. Mas foi a partir dessa mesma despretensão que a escola apresentou seus melhores sambas-enredo, seja pela irreverência de E o Samba Sambou (1990) ou pelo tom mais melodioso de Capitães de Asfalto (1987).

Dessa forma se espelhou toda a polêmica pré-escolha em torno do samba de Jorge Melodia e cia. Os mais conservadores reclamaram do suposto tom chulo do refrão do meio, em que se fala de “todo mundo pelado” e a “perereca da vizinha”. Mas em geral a escolha foi quase unânime, e o público presente aos ensaios abraçou o samba escolhido como há muito tempo não se via. Após a escolha, alguns mais afoitos, ao contrário, chegaram a consagrá-lo como o melhor samba deste Carnaval. Nem ao céu nem à terra: na verdade, o samba escolhido é um meio-termo entre o tom escrachado dos sambas dos anos oitenta e um certo refinamento melódico típico dos últimos três sambas da escola (pós-Eugênio Leal). Era, na verdade, um meio-termo entre o samba de invenção melódica e rítmica (o da parceria de Eugênio Leal), o samba de resgate explícito ao estilo verborrágico da escola (o da parceria de Diego Mendes, o mais crítico, cuja estrutura remetia diretamente ao samba de 1986, “muita saúva, pouca saúde, os males do Brasil são”) e até mesmo o atual samba de oba-oba (o da parceria de Fernando de Lima).

Fortemente discursivo, com a letra suplantando a melodia, este samba da São Clemente cumpre seu papel: restabelece a identidade musical da escola, ainda que seja um samba que deixe a desejar em termos de algumas de suas soluções melódicas e rítmicas.

* * *

Na próxima coluna, esperamos nos concentrar na safra dos Grupos de Acesso A e B (isto se eu conseguir “ter acesso” ao CD do B ...)

Marcelo Ikeda
21/01/2003