2/16/2009

União de Jacarepaguá 2004

texto sobre a obra-prima que foi o samba da União de Jacarepagua em 2004. Texto meio confuso e longo, mas que pelo menos registra a obra-prima que é este samba. (em 16/02/2009)

União de Jacarepaguá 2004

Todo o samba-enredo contemporâneo se debruça sobre um dilema. Na questão da letra, de um lado, uma necessidade de ser descritivo a ponto de abordar em sua exposição a integralidade do enredo e a disposição (em alas e alegorias) da escola na Avenida; de outro, de ser sintético e com expressões fáceis para tornar o samba de mais rápida assimilação. Na melodia, por um lado ser um samba de apelo cada vez mais popular, por outro, ser uma samba com mais nuances melódicas e repleto de meias-pausas e variações rítmicas em relação ao samba da década de 80, que seguia muito mais à risca suas convenções particulares (tanto rítmicas quanto melódicas).

Este samba da União de Jacarepaguá é uma verdadeira jóia por vários aspectos, entre eles o de ser uma reflexão profunda sobre esse hiato. Seu complexo projeto é na verdade o de reunir as duas tendências, resgatando um samba-enredo de origem mais clássica (até mesmo o samba dos anos 60), mas acrescentando-lhe uma roupagem contemporânea, seja no sentido de presentificar suas formas seja como meio de compatibilização às necessidades atuais do desfile e da disputa de samba-enredo dentro da escola. Temos então um samba de 24 longos versos, além dos oito que compõem os refrões, que descreve perfeitamente o enredo de forma clara mesmo para quem está sendo apresentado a este pela primeira vez, integralmente tomado por expressões simples e objetivas, com dois refrões fortes (especialmente o do meio) típicos dos sambas atuais. Por isso, na verdade é um samba popular, que só não se revela ainda mais devido à sua extensão, mas que não busca as quebras rítmicas e melódicas de uma vertente do samba-enredo atual (Gusttavo, Lequinho, Wilsinho Paz, etc.). Ou seja, não é propriamente um samba de invenção, no sentido de buscar novas formas de expressão para o gênero, mas é um samba de continuidade, de diálogo com uma cadência rítmica mais típica dos anos 80 e de uma estrutura de letra dos anos 60. Fato este que está longe de desmerecê-lo, pois sua vocação é exatamente esta: o de mostrar que não está necessariamente dissociado do apelo popular um bom gosto melódico e um requinte de composição. Por outro lado, quando dizemos "popular", pensamos na comunidade, enfim nas pessoas que tem uma certa intimidade com o gênero, e não nos "turistas" que eventualmente compõem o público da Sapucaí ou que desfilam nas escolas. Ou seja, popular é o público que freqüenta os desfiles do Grupo de Acesso, tipicamente diferente do que atualmente assiste ao Grupo Especial.

Mas se não é um "samba de invenção" e se demonstra uma vocação mais popular, isto não implica em absoluto que o samba seja de pouca criatividade. Ao contrário, este samba de Jacarepaguá se revela como um verdadeiro assombro em termos de sua força arquitetônica, ao construir em cada verso e cada nota, sem nenhuma necessidade de precipitação que o leve para um desfecho sorrateiro, uma leitura do enredo de supremo bom-gosto e requinte: não há uma única palavra ou acorde que não esteja perfeitamente encaixado no samba ou que destoe de um conjunto que suplanta sua simples expressão individual.

O ápice dessa tendência está na extraordinária segunda parte do samba, que - sem nenhum exagero - passa a ser peça obrigatória em qualquer antologia de samba-enredo. Chega-se quase ao limite das potencialidades de um samba atual: está para os nossos tempos assim como o que a "Aquarela Brasileira" representou para os seus. Nos primeiros cinco versos apresenta-se a diversidade das belezas naturais do Rio de Janeiro, com destaque para a singeleza das variações melódicas dos dois primeiros versos (observe, por exemplo, como, no primeiro verso, há uma gradação do agudo ao grave de extrema maestria e habilidade de composição, e como no segundo, se foge,
tanto em termos rítmicos quanto melódicos, da mera repetição do verso anterior). Em seguida, o samba passa a ser narrado em primeira pessoa, com o uso reiterativo de "sou" ou "eu sou", mas nunca como mero espelho de pobreza vocabular, e sim como recurso de expressão, sendo que a melodia nitidamente aponta para a consciência da repetição como efeito expressivo. Os três primeiros versos, de rara beleza melódica, poderiam apontar para um crescendo muito abrupto, tornando, nesta progressão, o samba agudo demais em seus versos finais (vejam por exemplo o caso do samba da Mangueira de 1992, sobre Tom Jobim, em que o crescendo é linear). Mas os autores no verso seguinte elaboram um recurso de extrema sofisticação, trazendo de novo o samba para o mais grave, para em seguida, dois versos adiante, novamente retornar aos acordes mais agudos, revelando a enorme variação melódica da obra e a estratégia dos compositores.

Apostando num tipo de composição que caminha na contramão do "trash enlatado" ou do fast food que contamina os desfiles atuais, revelando a destacada ousadia e coragem tanto do Presidente da escola quanto de sua ala dos compositores, a União de Jacarepaguá, em seu terceiro ano consecutivo no Grupo A, aposta num mesmo estilo refinado de samba-enredo, em consonância com os dois anos anteriores, consolidando uma identidade musical para a agremiação. Este samba, da mesma parceria do também belo samba de 2002 (sobre o sonho de voar), potencializa vários dos avanços do verdadeiro tour de force estilístico que era o samba de 2003, de outros autores, confirmando um trajeto de continuidade e de influência mútua que revela que, ao que tudo indica, os deuses da inspiração sopram para as bandas de Jacarepaguá.

Marcelo Ikeda
23/01/2004.