2/16/2009

Tutiuti 2003: Paulo Barros

Um texto interessante que escrevi sobre o antológico desfile do Paulo Barros pela Tuiuti, isso antes de ele se tornar a estrela que hoje é (em 16/02/09)

Tuiuti 2003

Após uma comentada disputa de bastidores com a Vila Isabel, o Tuiuti recebeu o “de acordo” dos herdeiros do pintor para realizar seu enredo sobre Cândido Portinari no ano do centenário de seu nascimento. A responsabilidade era grande. Um dos maiores pintores modernos brasileiros, Portinari, em articulação com os princípios artísticos da Semana de Arte Moderna de 1922, traçou em suas telas um retrato social de um Brasil muitas vezes rural e interior sem abrir mão de uma estética experimentalista. O desafio era grande. A nova diretoria, que assumiu a escola recebendo um legado impressionante da diretoria anterior, conseguindo levar a escola ao Grupo Especial, rompeu com Paulo Menezes, a princípio ideal para um enredo de tal porte, contratando Paulo Barros, carnavalesco mais conhecido pela trajetória nas escolas do grupo B e de seu trabalho com materiais recicláveis.

O desafio era grande, especialmente em se tratando de uma escola do Grupo de Acesso, com recursos limitados para traduzir tão ambicioso enredo. Entre tantas outras questões que o novo carnavalesco teria que se defrontar estavam, por exemplo, a das relações visuais entre a pintura erudita e a representação popular, as relações do pintor com o modernismo através de seu papel da ruptura contra o academicismo versus a estandardização dos atuais desfiles das escolas de samba, e, especialmente, a visão particular do pintor em relação ao Brasil e em especial ao olhar social de suas obras.

Mas se o desafio era grande, Paulo Barros conseguiu realizar o mais criativo desfile do Carnaval deste ano, exatamente por optar pelo seu oposto, negando o desafio, e visualizando a homenagem a Portinari com extrema simplicidade e em tons menores.

Ao contrário da opulência de um desfile com um olhar crítico sobre o painel social do Brasil ou ainda de uma reavaliação do processo artístico, Paulo Barros optou pela emoção ao invés do discurso, optou pela intimidade ao invés do olhar crítico. As mazelas da população de baixa renda revelam-se elementos de criação e, por meio do processo artístico, de transfiguração das dificuldades do dia-a-dia. Ao invés de valorizar Portinari como símbolo modernista ou como propagador da cultura brasileira no exterior, Barros preferiu vê-lo como o menino de Brodósqui, criando um enredo quase infantil. Simplificando os conflitos, rompendo um suposto academicismo, Paulo Barros percebeu que o Brasil das telas de Portinari é lindo, simplesmente porque é Brasil. E, com isso, acaba se revelando profundamente ligado com as raízes do Carnaval. É a origem modesta e a representação popular, é a presença do processo artístico, é a possibilidade do “ser-rei-por-um-dia”. Em suma, Portinari é um brasileiro, porque em suas telas, em sua vida, tudo é Brasil, tudo é carnaval. Fundindo todos esses aparentemente díspares elementos numa grande festa, Paulo Barros realizou um desfile memorável, porque, ao negar-se como discurso, ao negar-se como olhar, o desfile do Tuiuti acabou se revelando paradoxalmente tudo isso: um olhar profundo sobre a brasilidade e sua representação, dados os limites dos atuais desfiles das escolas de samba.

E é só então, só a posteriori que entendemos as escolhas de Paulo Barros, desde a concepção da sinopse até a disputa do samba-enredo. Entendemos porque o belíssimo samba do Noca foi preterido pelo “samba-de-sempre” de Fernando de Lima e cia. Sim, o samba de Fernando de Lima encantou e surpreendeu toda a avenida, exatamente por sua sincronia perfeita com o enfoque do enredo. Fernando de Lima entendeu como ninguém o aspecto mágico do enredo, sua tendência ao infantil, ao universo de “sonhos e fantasias”. Opções melódicas como a dos versos como “Retratos da vida que em cores vivas eu descobri”, ou ainda “Vem pincel mágico iluminar / os meus versos e destilar / cores, fantasias” mostram como a estética do “falso encantamento” ou da “melancolia do enternecimento” que vem caracterizando os últimos sambas do veterano compositor se incorporam às “cores vivas” do enredo, sintetizando o tom misto entre o terno e o caloroso escolhido pelo carnavalesco.

Facilitando o acesso a um enredo sobre uma personalidade não-popularesca, mas popular, Paulo Barros, em sua explosão de emoção e alegria, deu talvez a maior das lições do Carnaval 2003, rompendo muitos dos mitos da atual concepção do desfile de Carnaval.

Marcelo Ikeda
30/06/03.