Coluna - num 3
Coluna 3 – os sambas do Grupo de Acesso A
Se a safra do Grupo Especial foi uma das menos felizes dos últimos tempos, o mesmo não pode ser dito em relação ao Grupo de Acesso A. Ao contrário, em 2004 veremos uma das safras mais consistentes do Grupo. Ainda, teremos o privilégio de acompanhar três sambas bem acima da média, inclusive do Grupo Especial: União de Jacarepaguá, Vila Isabel e Tuiuti. O samba de Jacarepaguá, que será visto de forma mais detalhada a seguir, é o grande samba de 2004, entre todos os grupos, uma verdadeira obra-prima, comprovando que o gênero samba-enredo está longe de parecer esgotado. O samba simplesmente consegue praticamente o impossível: aliar uma letra longa e descritiva com uma melodia repleta de meandros e trechos de enorme inventividade, ou ainda as exigências de um samba-enredo atual com um de linhagem clássica. Já o samba da Vila Isabel é absolutamente memorável por outro aspecto, estando quase na contramão do samba de Jacarepaguá. Aqui, o que está em jogo é, a partir de uma visão de samba-enredo que tem como primazia o competitivo, conseguir extrair melodia e poesia. A perfeição com que o faz nos comprova que é preciso ver além, que não se pode simplesmente rotular o samba competitivo como um samba menor. Já o samba da Tuiuti explora os limites entre o samba-enredo e os demais tipos de samba, trazendo para o formato do samba-enredo um jeito de “samba de raiz” ou especialmente de “samba-exaltação”, até explodir num refrão final absolutamente desconcertante.
Além destes três sambas memoráveis, outros dois estão acima da média, comprovando a boa safra do Grupo A: Santa Cruz e União da Ilha. A Santa Cruz repete a parceria de Doutor e Fernando de Lima em mais um samba típico da parceria, com contornos melódicos praticamente idênticos ao samba de 2003, mas que ao mesmo tempo comprova a eficiência e a coerência do “samba de laboratório” do grupo. Já o samba da União da Ilha é outro e deve ser visto do mesmo modo que o da São Clemente: ainda que não seja um “samba de invenção”, é um samba absolutamente necessário por resgatar uma identidade musical e carnavalesca própria da escola.
Ainda, três sambas não deixam a dever a outros do Especial: Rocinha, Alegria e Leão. Consistente, o discreto samba da Rocinha tem passagens de letra e melodia de suave beleza, e merece ser observado mais atentamente, porque foge tanto do estilo oba-oba quanto de um estilo abertamente mais refinado. O samba da Alegria é o outro lado da moeda: aberto, alegre, delirante, carnavalesco, é um samba que não tem o menor pudor em romper sua própria estrutura para promover um mergulho desigual e fascinante na obra de Dorival Caymmi. O samba do Leão tem seus méritos, seja num longo refrão final ou na sinuosa melodia da primeira parte, e tem os seus momentos.
Por fim, os outros quatro. A Estácio mais uma vez opta por um samba de embalo irregular, apesar de ter um ou outro momento. A Cubango se esforça ao máximo para evitar o samba-trash com um enredo sobre os shopping centers, mas cujo resultado dificilmente poderia ser positivo. A Inocentes aposta na marchinha fácil e no samba descartável. E a Lins desperdiça a homenagem à Mangueira para compor um samba absolutamente burocrático e descritivo, que ignora que uma visão de poesia deve se compor de uma integração entre letra e poesia, e nunca da supremacia de uma sobre a outra.
Marcelo Ikeda.
06/02/2004.
Jacarepaguá
Todo o samba-enredo contemporâneo se debruça sobre um dilema. Na questão da letra, de um lado, uma necessidade de ser descritivo a ponto de abordar em sua exposição a integralidade do enredo e a disposição (em alas e alegorias) da escola na Avenida; de outro, de ser sintético e com expressões fáceis para tornar o samba de mais rápida assimilação. Na melodia, por um lado ser um samba de apelo cada vez mais popular, por outro, ser uma samba com mais nuances melódicas e repleto de meias-pausas e variações rítmicas que o samba da década de 80, que seguia muito mais à risca suas convenções particulares (tanto rítmicas quanto melódicas).
Este samba da União de Jacarepaguá é uma verdadeira jóia por vários aspectos, entre eles o de ser uma reflexão profunda sobre esse hiato. Seu complexo projeto é na verdade o de reunir as duas tendências, resgatando um samba-enredo de origem mais clássica (até mesmo o samba dos anos 60), mas acrescentando-lhe uma roupagem contemporânea, seja no sentido de presentificar suas formas seja como meio de compatibilização às necessidades atuais do desfile e da disputa de samba-enredo dentro da escola. Temos então um samba de 24 longos versos, além dos oito que compõem os refrões, que descreve perfeitamente o enredo de forma clara mesmo para quem está sendo apresentado a este pela primeira vez, integralmente tomado por expressões simples e objetivas, com dois refrões fortes (especialmente o do meio) típicos dos sambas atuais. Por isso, na verdade é um samba popular, que só não se revela ainda mais devido à sua extensão, mas que não busca as quebras rítmicas e melódicas de uma vertente do samba-enredo atual (Gusttavo, Lequinho, Wilsinho Paz, etc.). Ou seja, não é propriamente um samba de invenção, no sentido de buscar novas formas de expressão para o gênero, mas é um samba de continuidade, de diálogo com uma cadência rítmica mais típica dos anos 80 e de uma estrutura de letra dos anos 60. Fato este que está longe de desmerecê-lo, pois sua vocação é exatamente esta: o de mostrar que não está necessariamente dissociado do apelo popular um bom gosto melódico e um requinte de composição. Por outro lado, quando dizemos “popular”, pensamos na comunidade, enfim nas pessoas que tem uma certa intimidade com o gênero, e não nos “turistas” que eventualmente compõem o público da Sapucaí ou que desfilam nas escolas. Ou seja, popular é o público que freqüenta os desfiles do Grupo de Acesso, tipicamente diferente do que atualmente assiste ao Grupo Especial.
Mas se não é um “samba de invenção” e se demonstra uma vocação mais popular, isto não implica em absoluto que o samba seja de pouca criatividade. Ao contrário, este samba de Jacarepaguá se revela como um verdadeiro assombro em termos de sua força arquitetônica, ao construir em cada verso e cada nota, sem nenhuma necessidade de precipitação que o leve para um desfecho sorrateiro, uma leitura do enredo de supremo bom-gosto e requinte: não há uma única palavra ou acorde que não esteja perfeitamente encaixado no samba ou que destoe de um conjunto que suplanta sua simples expressão individual.
O ápice dessa tendência está na extraordinária segunda parte do samba, que – sem nenhum exagero – passa a ser peça obrigatória em qualquer antologia de samba-enredo. Chega-se quase ao limite das potencialidades de um samba atual: está para os nossos tempos assim como o que a “Aquarela Brasileira” representou para os seus. Nos primeiros cinco versos apresenta-se a diversidade das belezas naturais do Rio de Janeiro, com destaque para a singeleza das variações melódicas dos dois primeiros versos (observe, por exemplo, como, no primeiro verso, há uma gradação do agudo ao grave de extrema maestria e habilidade de composição, e como no segundo, se foge, tanto em termos rítmicos quanto melódicos, da mera repetição do verso anterior). Em seguida, o samba passa a ser narrado em primeira pessoa, com o uso reiterativo de “sou” ou “eu sou”, mas nunca como mero espelho de pobreza vocabular, e sim como recurso de expressão, sendo que a melodia nitidamente aponta para a consciência da repetição como efeito expressivo. Os três primeiros versos, de rara beleza melódica, poderiam apontar para um crescendo muito abrupto, tornando, nesta progressão, o samba agudo demais em seus versos finais (vejam por exemplo o caso do samba da Mangueira de 1992, sobre Tom Jobim, em que o crescendo é linear). Mas os autores no verso seguinte elaboram um recurso de extrema sofisticação, trazendo de novo o samba para o mais grave, para em seguida, dois versos adiante, novamente retornar aos acordes mais agudos, revelando a enorme variação melódica da obra e a estratégia dos compositores.
Apostando num tipo de composição que caminha na contramão do “trash enlatado” ou do fast food que contamina os desfiles atuais, revelando a destacada ousadia e coragem tanto do Presidente da escola quanto de sua ala dos compositores, a União de Jacarepaguá, em seu terceiro ano consecutivo no Grupo A, aposta num mesmo estilo refinado de samba-enredo, em consonância com os dois anos anteriores, consolidando uma identidade musical para a agremiação. Este samba, da mesma parceria do também belo samba de 2002 (sobre o sonho de voar), potencializa vários dos avanços do verdadeiro tour de force estilístico que era o samba de 2003, de outros autores, confirmando um trajeto de continuidade e de influência mútua que revela que, ao que tudo indica, os deuses da inspiração sopram para as bandas de Jacarepaguá.
Marcelo Ikeda
23/01/2004.
Vila Isabel
A disputa para a escolha do samba-enredo na Vila Isabel colocou frente a frente um dilema que atinge não só a escola, mas o desfile das escolas de samba em geral. De um lado, o samba de Jorge Tropical, que tentava o bicampeonato; de outro, o samba de Leonel, André Diniz e parceiros. Ou seja, de um lado, um samba de vertente clássica, com uma melodia original mais próxima dos sambas antigos da escola; de outro, um samba mais voltado para o lado competitivo e para as necessidades do desfile de hoje. Dado o decepcionante resultado do ano passado, em que a escola não conseguiu retornar ao Grupo Especial com o samba de Jorge Tropical, seria natural que a outra vertente ganhasse força.
Fruto de uma parceria que já fez o seu nome no samba-enredo contemporâneo, o samba da Vila Isabel deve ser analisado junto com o samba do Salgueiro, composto pela mesma parceria. Mas enquanto tudo no samba do Salgueiro aponta para uma impossibilidade, ou para uma resignação, neste samba da Vila Isabel, tudo se transforma, todo o samba é envolto por uma necessidade do desejo. Ainda, o que está em jogo é, acima de tudo, um samba que prima pelo competitivo. Mas o que este samba comprova – e esta é sua grande lição – é que não é isto o que o torna menor, é poder aliar uma visão competitiva a um lado de poesia e melodia.
O enredo, sobre a cidade de Paraty, a princípio não parece nada inspirador. Mas ao invés da descrição meramente didática, os autores incorporaram na estrutura do samba uma idéia de caminho e percurso com diversas analogias à sua própria posição como compositores. Neste caminho em direção às riquezas e às tradições de Paraty, não resta uma saudade, ou uma revisitação nostálgica. O que se busca é uma analogia com um olhar de hoje, como se todo o frescor do caminho se mantivesse hoje da mesma forma que antes. O desafio em relação à proposta da parceria em termos de samba-enredo fica claro no seguinte verso:
“Que preserva tradições
E se alinha às transformações”
Passado e presente se fundem, numa idéia circular, já traduzida na cabeça do samba (‘Chegou minha Vila a girar”), e todo o samba se inspira de uma forma comovente numa idéia de liberdade e esperança (na felicíssima expressão “veio azul e branco”). E é claro, o que torna mais comovente é que essa viagem ao passado e às riquezas de Paraty se revela um espelho da própria história da Vila Isabel. E ao invés de se renderem ao fácil discurso de nostalgia, a lição dos compositores é que “meu passado é hoje”, e que esse legado é mais que presente, mas sem nunca se esquecer dos desafios e das transformações próprios da vida.
Marcelo Ikeda.
15/02/2004.
Tuiuti
Não é preciso muito para tornar um samba-enredo marcante: é preciso antes de tudo um olhar sobre o enredo que se traduza através de uma estrutura que articule letra e melodia. O belo samba da Tuiuti é exatamente isso: é um samba baseado numa estrutura sem grandes variações melódicas, tornando-o até certo ponto repetitivo, especialmente na transição da primeira parte para o refrão do meio. Mas seu aspecto de invenção é exatamente esse: através de um tom menor ambíguo que perpassa três quartos do samba, consegue romper o formato tradicional dos sambas-enredo atuais, fugindo das convenções para buscar sua própria expressão particular.
E essa expressão busca sua originalidade através de um implícito questionamento do que é específico do samba-enredo, tornando-se mais próximo – por uma noção de ritmo, de contornos melódicos, e de letra – de um samba-exaltação. Em termos de letra, este samba da Tuiuti ainda reluta contra o samba-enredo descritivo, para – como seu primeiro verso apresenta de forma muito clara – promover um “mergulho” poético e lúdico no imaginário do poetinha, ao invés de simplesmente listar suas principais obras. Vejam como a primeira parte foge do meramente descritivo para incorporar um sentido poético:
“Venha mergulhar
Num lindo mar de fantasias
Meu canto está no ar
Com um leve toque de magia
Vejo no amanhecer
Versos e canções de amor
E uma doce aquarela
De um paraíso multicor”
Mas tudo ainda está para ser desvelado de forma desconcertante e inesperada, no memorável refrão final, que explode como um grito de desabafo. Ao contrário de todo o tom monocórdico e sombrio do samba, o refrão final atinge as notas mais agudas, integrando o ato de desfilar com a proposta do enredo. Com isso, a homenagem se expressa em toda a sua atualidade, como lição de vida (um tríptico: ato de lembrar – ato de desfilar – ato de viver). O longo refrão final quebra todos os paradigmas da fórmula do “samba-empolgação”, o que só serve para confirmar a inutilidade das fórmulas: é sem sombras de dúvida o refrão final mais marcante do ano de 2004.
Burilado com pequenas mas significativas correções (realizadas por um dos compositores que fora derrotado na final, um dos mais raros atos de generosidade em termos de uma disputa de samba-enredo), este samba da Tuiuti, cujo desempenho deve ser melhor avaliado após o desfile da escola na Avenida, é uma das grandes provas que o gênero do samba-enredo pode se renovar caso haja a coragem de também olhar para o antigo e para suas raízes.
Marcelo Ikeda.
15/02/2004.
Santa Cruz
O samba-enredo contemporâneo possui várias vertentes. É preciso olhar com atenção cada uma delas, analisando o viés de suas limitações, mas também respeitando suas particularidades, refletindo até que ponto esse viés espelha um olhar sobre o gênero e sobre o próprio desfile das escolas de samba. Este é o desafio quando se ouve mais um samba de Fernando de Lima, o típico “samba de laboratório”. Este samba da Santa Cruz é praticamente idêntico em termos musicais e de estrutura ao samba da Santa Cruz de 2001 e de 2002, todos da mesma parceria.
Refrão Final 2003:
“É Santa Cruz pode aplaudir, alto astral
O nosso show hoje é aqui, mundial
Você faz esta festa, chegou a hora é esta,
Carnaval!”
Refrão Final 2004:
‘Pintei de amor meu coração
Deixei entrar a sedução
Brindo esta terra que a história traduz
Santa Cruz!”
(Compare também com a parte de 2003)
“Estrelas de Luz
O artista traduz emoção”
Como típico samba de Fernando de Lima, não há espaço para a invenção, para o esgar, ou para a mera intuição: trata-se de buscar os caminhos de um samba essencialmente competitivo, um “samba de laboratório”. Mas ainda assim, e esta é a sutileza do grupo de compositores, toda a rigidez de sua estrutura reflete apenas sua forma particular de fazer poesia. À sua maneira, o samba busca um diálogo com um processo poético, um inventário preciso de paixão e fantasia. De novo, a escolha das palavras se torna marcante, como nos versos “jóia que o amor poliu” ou “mergulhei meus sonhos em tua baía”. Mas talvez os versos que melhor definam o estilo dos compositores sejam “Abri as comportas das recordações / E desaguei as emoções”, em que toda a rigidez do concreto e da pesada estrutura física da represa se mistura a uma idéia intangível de memória, recordação, fantasia e emoção. É o que está em jogo por trás de todo o concreto da estrutura de “samba de laboratório” dos compositores.
Marcelo Ikeda.
16/02/2004.
Alegria
Se nem tudo que reluz é ouro, nem todo samba-enredo prima pelos contornos técnicos, pela perfeição do acabamento. Ao contrário, o típico samba-enredo, especialmente nos anos 80, era o que mantinha uma comunicação com o público, o que refletia de forma intuitiva um certo inconsciente coletivo, uma tradição coletiva.
O samba da Alegria da Zona Sul reflete isso, todo um desejo de um Carnaval como ato de despojamento e de viver. Nessa ingenuidade reside sua força intuitiva. Os autores viram no enredo em homenagem a Dorival Caymmi uma oportunidade de promover um mergulho nas tradições do Rio de Janeiro e da Bahia. Delirante, visionário, o enredo coloca as duas heranças culturais num verdadeiro caldeirão de influências mútuas, sem se preocupar em localizar as diferenças. Tudo então passa a fazer parte de um grande Brasil, de um autêntico Carnaval, e é nessa intuitiva generosidade que o samba ganha sua força particular.
A primeira parte traduz todo o espírito do samba de forma bastante intuitiva e inspirada. Os quatro primeiros versos sinalizam o teor místico do samba:
“O céu da Bahia está em festa
Dança ioiô, canta sinhá
Hoje os atabaques anunciam
Caymmi vem nos braços de Iemanjá”
Cheio de um ingênuo e simples misticismo que tem inúmeros paralelos com a própria obra do compositor, a abertura do samba promove um encontro entre céu, terra e mar para a vinda de Caymmi. O samba ainda faz um verso de incrível intimidade e sutileza (“dança ioiô, canta sinhá”), conseguindo, de forma absolutamente simples, retratar todo um espírito de festa e de introdução ao espírito da obra do compositor.
Nos outros quatro versos, o samba pontua a questão do contato cultural, da ponte entre a Bahia e o Rio, ponto-chave do samba, de forma absolutamente clara e sucinta.
“No Ita naveguei
e vim no Rio morar
Bateu forte o coração
Copacabana é minha paixão”
Mas tudo se desvela na segunda parte, em que, com grande energia, o samba desconstrói toda sua possibilidade de unidade de estrutura para promover um mergulho desigual e fascinante nesse universo. Rompendo qualquer possibilidade de uma idéia de percurso, na segunda parte, é como se o compositor já estivesse completamente integrado a conviver entre os dois universos. O samba então submerge, de forma delirante, nessa confluência de culturas e acontecimentos. Como o próprio samba diz, um verso sintetiza, na melodia e na letra, sua força intuitiva: “Caymmi é alegria” (ou seja, “alegria” tanto como enredo da escola quanto como explosão de um desejo). A Alegria então dá sua contribuição no sentido de resgatar um samba-enredo de empolgação que preserva sua força intuitiva e seu desejo por um Carnaval de mais vibração que de técnica.
Marcelo Ikeda.
15/02/2004.
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