2/16/2009

Santa Cruz 2003

Santa Cruz 2003

Após uma tumultuada disputa de bastidores com a Vila Isabel para assegurar sua ascensão ao Grupo Especial, a Santa Cruz abre o Carnaval do Grupo Especial de 2003 expondo um dilema extremamente característico do Carnaval desse ano: a correção ou a espontaneidade. Entre essa fissura, a Santa Cruz, que tantas vezes já foi injustiçada no Grupo de Acesso por seguir um caminho próprio, preferiu a primeira opção, preferiu adaptar-se às regras do jogo. Da mesma forma que os últimos desfiles da escola no Grupo de Acesso, a Santa Cruz optou pelo desfile técnico, em que nada poderia lembrar a Santa Cruz de meados da década de oitenta e início de noventa, justamente quando a escola conseguiu retomar alguma projeção. Nada poderia recordar uma escola que já teve Aroldo Melodia como puxador, que teve refrões como “quem não tem quiabo oferece caruru”, ou que já falou dos “bêbados ilustres” do Brasil, sempre com muito bom humor. Nada poderia resgatar a picardia do retorno da Santa Cruz ao especial, depois de quase vinte anos, com a irreverência do Pasquim e do “gip gip nheco nheco”. Após algumas grandes frustrações, como uma falta de luz, como a não-repercussão do desfile que traz de volta uma mulher ao posto de intérprete – e ninguém menos que Leci Brandão – a Santa Cruz empenhou sua última cartada em seu retorno ao grupo principal em 1997. Num desfile cheio de energia e vibração, com um samba-enredo leve e vigoroso, sobre as bandeiras, a Santa Cruz foi prejudicada num ano em que o descenso era de quatro escolas, tornando a disputa quase impossível para a escola da Zona Oeste. Era a hora, então, do desfile técnico, até porque algumas opções, como Cazuza, ou Abraham Medina, não tiveram a repercussão imaginada.

Negando seu percurso, assimilando a necessidade do “desfile moderno”, a Santa Cruz em 2003 fez um desfile correto. O samba-enredo escolhido, do veterano Fernando de Lima, sintetiza o dilema em que se encontra a escola. É um samba correto, técnico, e exatamente nos intervalos em que se esquece do tom formal e busca um diálogo, alcança seus melhores momentos. É exatamente isso: nesse desfile, a Santa Cruz, sua comunidade se exibiu com um grito entalado na garganta. Antes de desfilar bem, era preciso agora mostrar aos outros que se poderia desfilar bem, que se tinha condições de desfilar como qualquer escola do Grupo Especial. É com base nessa preocupação em mostrar sua “maturidade”, em demonstrar seu “profissionalismo”, ao invés de simplesmente ser madura, ao invés de simplesmente desfilar, que a Santa Cruz bloqueou seu próprio potencial, escondeu-se numa redoma de vidro. O enredo era muito ambicioso: era sobre o teatro desde a sua formação, passando pela Grécia antiga, pelo teatro ocidental e oriental, até chegar ao Brasil. Era um enredo de pompa e luxo. Concebido pela esposa do presidente, foi desenvolvido por um carnavalesco jovem, que pegou o enredo no meio do caminho, e optou por cores fortes, como o rosa e o roxo, descaracterizando qualquer possibilidade de harmonia visual ente os setores da escola. Preferiu-se o histrionismo, ao invés da simplicidade, ou da presença do verde-e-branco. Preferiu-se o tom ambicioso a um enredo afetuoso, ou ainda a um enredo sobre a magia e a ilusão. Não se percebeu que essencialmente era um enredo que não tinha como não ser baseado na emoção, com a presença de tantas personalidades consagradas do meio artístico brasileiro. Mas agora não poderia mais haver espaço para a espontaneidade, para o devaneio, para a emoção. Por isso, a Santa Cruz fez um desfile triste, porque, ao invés de aproveitar a oportunidade há tantos anos lutada pela escola para retornar ao grupo, preferiu tentar mostrar que era uma escola como as outras, ao invés de tentar ser ela própria. Seu destino foi o previsível: os jurados, que desconheciam a escola, que ignoravam tudo o que acabou de ser dito, tudo o que estava em jogo, se limitaram a dar notas exatamente contra todo o critério técnico que a escola havia tanto buscado.

Marcelo Ikeda
26/03/2003