2/16/2009

samba concorrente Mangueira 2003 - Lequinho e Amendoim

Texto muito bacana que escrevi sobre o antológico samba de Lequinho e Amendoim que perdeu a final na Mangueira para o Carnaval de 2003. (em 16/02/09)


O Carnaval de 2003 poderia ser embalado por um samba quase antológico: é o samba concorrente na Mangueira pelos compositores Lequinho e Amendoim, que buscavam um bicampeonato, já que o samba da escola em 2002 foi de autoria da dupla. Ao contrário do samba de 2002, que, apesar de ter um papel fundamental no campeonato da Mangueira, esbarra em inúmeros chavões melódicos e lugares-comuns, ilustrando de forma apenas convencional o enredo sobre o Nordeste, desta vez trata-se de um samba de riqueza singular e, dentro de seus limites, inovador, pelo nível de envolvimento da parte dos compositores, um trabalho de entrega pessoal, com uma carga de interioridade quase inacreditável.

Para traduzir a bela sinopse da escola, que contou a saga em claros tons épicos, os compositores optaram por uma linha ousada. Mas o que torna sua escolha particularmente comovente é que toda a linha melódica do samba se baseia numa idéia não apenas de fé e perseverança, mas essencialmente de iluminação. Com isso, toda a estrutura do samba se baseia num percurso, num caminho místico que não tarda a se desvelar numa verdadeira procissão em busca de uma redenção.

Pulsando como um verdadeiro coração, já que o amor é um dos frutos mais marcantes desse caminho de busca, o samba se equilibra entre um conjunto de sístoles e diástoles, com um nível de ambigüidade raramente visto num samba-enredo, especialmente em sua primeira parte. Entre os tons altos e baixos, entre os crescendos e diminuendos, o samba percorre os caminhos sinuosos e desiguais da narrativa épica do povo egípcio com um vigor quase profético.

O início do samba já ilustra perfeitamente essa opção. “Mangueira...canta.../A saga de um povo sonhador/Mangueira prega /as palavras do Senhor ô ô ô”

Nesses primeiros versos, com destaque para o trecho “Mangueira prega”, destaca-se uma idéia de repetição, que o torna quase como uma ladainha. O “ô ô ô” final, mais que completar o decassílabo, assim como o segundo verso, já apresenta o painel de ambigüidade melódica, em tons baixos, que caracteriza toda a primeira parte do samba. Aí também surge a figura do narrador épico, como uma espécie de “contador de histórias”, que confere ao samba perfeita coerência em termos de ponto de vista com a sinopse. A Mangueira “canta uma saga” e “prega as palavras do Senhor”. A incorporação da ladainha na estrutura dos versos iniciais do samba, como um caminho para uma busca divina, nos faz lembrar o mesmo recurso de “Círio de Nazaré” (São Carlos 1975). Mas há uma pequena diferença, muito significativa. Enquanto no samba de São Carlos o modelo era a dúvida, aqui há a certeza deste caminho: como um percurso histórico, é a saga de um povo que já teve seu final, a redenção. Enquanto os romeiros do Círio de Nazaré clamam por sua salvação (Ó Virgem Santa, olhai por nós/ olhai por nós, ó Virgem Santa / pois precisamos de paz), o narrador épico da Mangueira ao contar a história já revela sutilmente conhecer a vitória e as virtudes de seu povo.

Dessa forma, logo a seguir do começo tenebroso, a oscilação, o crescendo, o tom levemente mais alto. “E derrama em verde e rosa a história / em poesia”. Mas logo em seguida, o caminho de volta, a dúvida. “Que ao povo oprimia” E de novo surge a visão profética, a iluminação. “Mas existia um clamor e um dito ecoou liberdade”. Até terminar a primeira parte com uma síntese das sístoles e diástoles da primeira parte do samba: “Uma estrela brilhou, anunciando o libertador”. Neste verso de melodia complexa, seu tom baixo e levemente sinistro revela de forma muito sugestiva o berço do nascimento do redentor: um mundo de trevas e lama. A última sílaba no entanto marca de forma profética uma espécie de revelação (li-ber-ta-DOR).

Com a apresentação do narrador épico, o estabelecimento do percurso da redenção como uma espécie de ladainha e a descrição do mundo tenebroso que geriu o nascimento do salvador, o samba está pronto para seu primeiro refrão. Após o anúncio do libertador, os princípios da fé podem afinal ser descritos. Se o refrão do meio tende a ser em geral apenas uma espécie de passagem para a segunda parte, aqui todos os pilares desse novo mundo anunciado são expostos pelos compositores. Como uma verdadeira declaração de princípios, é um refrão atípico, com cinco versos bastante longos. Mas não deixa também de ser uma perfeita transição, pois a partir da segunda parte o samba sofre uma brutal transformação.

Após o estabelecimento do tema central do enredo e as idéias do salvador, o samba abandona sua poesia do mistério e da ambigüidade para se revelar inesperadamente lírico. Os versos mais curtos, límpidos, seu tom mais alto, desvelam um típico samba mangueirense. Num crescendo contínuo, o samba coroa o progressivo caminho de vitórias e de conquistas até seu ideal final.

A partir do verso “Brasil!”, o samba incorpora uma ternura e uma euforia quase impensáveis quando ouvimos os taciturnos versos de abertura do samba. Nessa parte final, os compositores fazem uma associação muito feliz entre um tripé que percorre toda a estrutura do enredo: Egito/Brasil/Mangueira. Por que a trajetória longínqua do povo egípcio poderia interessar ao Brasil de hoje? Ou ainda, ao Carnaval de hoje? Qual a harmonia entre esses ideais e o desfile da Mangueira? Sim, porque queremos do Brasil um mundo de paz e esperança. Ou ainda, sim, porque queremos que das dificuldades do dia-a-dia da humilde comunidade da Estação Primeira surja um caminho de vitória que se confunda com o próprio desfile da escola na Sapucaí. O crescendo da segunda parte do samba se torna então um canto poético e apaixonado em torno da sua escola de coração. E do épico, o samba se faz lírico. Não por acaso, é em termos melódicos onde se concentra o clímax do samba.

“Mangueira...
Meu mandamento é te amar cada vez mais
Hoje o meu samba é a paz,
e o mundo é mais feliz”

Mas a grande declaração de amor dos compositores ainda estava para ser feita. O refrão final da saga mangueirense, o mesmo caminho trilhado pela apaixonada visão dos compositores, se encerra com um tom entusiástico absolutamente desconcertante. Com uma entrega passional e uma sinceridade estarrecedora, afirma-se, às claras, sem nenhuma preparação ou qualquer recurso literário que esconda suas intenções, “eu sou feliz!”. E não satisfeito, inclusive desprezando a falta de métrica do verso de oito sílabas, repete-se mais uma vez: “eu sou feliz!”. Não há então como fugir da sentença, fingir não ouvir, tentar que os versos nos passem despercebidos. Numa objetividade cega, num grito de otimismo, simples, profundo e poético, os compositores encerram sua missão final: assim como a saga descrita, o samba composto por eles também chega ao seu final apoteótico. E quem acompanha o samba chega à sua redenção, recebe sua profética iluminação. Nada mais típico de um samba tipicamente mangueirense.

* * *

Ao nascer de uma ensolarada manhã de domingo, a Mangueira finalmente anunciava seu samba para o Carnaval de 2003: era o de Marcelo d´Aguiã, Bizuca, Gilson Bernini e Clóvis Pê. Estava selado o destino do samba de Lequinho e Amendoim: o esquecimento. Daqui a algumas semanas, quando a escola grava sua participação no CD das escolas de samba, e inicia seus ensaios, ninguém mais se lembrará deste memorável samba, que, à sua maneira, seguindo um projeto muito pessoal de samba-enredo, incorporou na própria estrutura do samba um caminho de redenção.

Os ativos mangueirenses que freqüentavam todos os sábados a quadra da escola diziam que o samba de Lequinho e Amendoim era uma decepção em relação ao samba do ano anterior, diziam que havia algo no samba que “não casava, que não se encaixava”. Claro, não casava com um projeto de samba-enredo que prima pelo trivial, pela emoção fácil e pelo discurso linear, que cisma em oferecer de cara todas as suas chaves. Mas o que é particularmente interessante é como, dadas todas as mudanças de tom, este projeto se revela em inteira continuidade com o samba de 2002: é o início que fala em “Mangueira canta”, é o trabalho invulgar com o refrão do meio, é o percurso como caminho lírico de paixão e iluminação, é até mesmo o bordão (quase inaudível desta vez) “bate no peito e diz”. Ou como, entre todas as descontinuidades e ambigüidades tão próprias ao tema em questão, surge uma visão perfeitamente mangueirense. Mas desta vez, até pela unanimidade em relação aos frutos do samba de 2002, surgiu uma postura mais corajosa e arrojada da dupla de compositores. Rebeldia sutilmente repreendida pela conservadora visão da escola. Uma pena. Dado o potencial impacto que um samba vencedor da Mangueira pode provocar em termos de moldar um certo inconsciente coletivo, não seria exagero afirmar que esse samba poderia ter uma influência marcante nos rumos futuros do samba-enredo. Só nos resta torcer que a dupla não acabe retroagindo para uma visão mais conservadora na próxima disputa. Ou então que troquem de escola.

* * *

A diferença entre o tom do samba de Lequinho e Amendoim e o do vencedor é clara. “Surge um caminho de luz pra mergulhar na história”. Enquanto a dupla olha sempre para o futuro, para o grupo vencedor, o caminho é o passado.

Marcelo Ikeda
14/10/2002

1 Comments:

Anonymous amendoim do samba said...

caro amigo ikeda peço desculpas pelo descaso mais hoje fui ver tua plena e arrasadora biografia sobre mim e lequinho e te confesso que as lagrimas vieram a tona foi para mim este samba de 2003 um dos sambas mais importantes de minha vida um samba que coplhemos o que temos de melhor de nós para unir a perfeição estivemos muitos mais perto de nossas familias amigos e buscamos compreender muito mai os outros apartir desta composição mais como todo servo vomos rekiados e brutalmente saquiados enfim te agradeço e gostaria de entrar em contato com a tua pessoa para agradecer de coração e abraçar-te como um amigo pois lisongiado fiquei com tuas palavras a narrativa de um pedaço de minha alma desde já um forte abraço!!!

4:43 PM  

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