4/18/2011

O silêncio como motor do verso

Texto que escrevi sobre o Carnaval 2011, especialmente comparando os desfiles da Tijuca e da Mangueira. Ele extrapola o samba-enredo mas também é atravessado pelas questões musicais. Publicado em http://pedromigao.blogspot.com/2011/03/cinecasulofilia-especial-o-silencio.html



O silêncio como motor do verso

O desfile das escolas de samba de 2011 pode ser visto entre dois aspectos, entre duas opções que se materializam nos desfiles e nas opções de duas escolas: a Unidos da Tijuca e a Mangueira. De um lado, o carnaval-espetáculo, de surpresas e de impacto visual; de outro, o carnaval tradicional, empurrado pelo canto e pelo chão da comunidade. É inegável que Paulo Barros trouxe um outro nível ao Carnaval carioca, criando um desfile de imediata comunicação ao público, compondo traquitanas que se revelam e se escondem ao público, como um quebra-cabeças visual que se revela ao vivo, diante dele, dialogando com os espetáculos de variedade, o circo, o teatro, o ilusionismo. Existe ali uma marca própria de um artista visual que estabelece um desfile de plena comunicação com o público pela facilidade de leitura do seu enredo. No entanto, a participação não se dá num sentido carnavalesco, em que o público é levado a “desfilar” com a escola, mas a interação ocorre pelo espanto e pela surpresa – o público fica boquiaberto, deve “prestar atenção” nos efeitos que surgem e desaparecem, o que precisa de um tempo de fruição: todos os olhos precisam estar fixos para o espetáculo, e não para o outro, o sambista ao seu lado. A renovação que Paulo Barros trouxe aos desfiles das escolas de samba é bem-vinda:a partir de seu sucesso, outros presidentes do mundo do samba tomaram coragem para trazer carnavalescos dos grupos de acesso, como hoje estão Cahê Rodrigues, Fábio Ricardo – e até mesmo a Estácio, que neste ano, trouxe um canavalesco de 26 anos oriundo dos carnavais virtuais, da internet. Mas esse tipo de espetáculo possui as suas contraindicações: a Tijuca destruiu sua enorme tradição de sambas-enredo, que agora tornam-se meras leituras corretas que ilustram um enredo, tanto que sua principal chave é a letra e os refrões, e não as variações melódicas, como os melhores sambas da Tijuca (vide “o dono da terra” e “agudás”, só para ficar nos mais recentes, entre tantos outros). A renovação de Paulo Barros – um novo carnavalesco, uma nova escola, uma nova estética – aponta acima de tudo para “um novo padrão” de desfiles, uma nova visão da administração das escolas de samba promovida pela Liesa, uma “profissionalização da gestão” no sentido de atrair estrangeiros e as emissoras de televisão, as verdadeiras “consumidoras” do Carnaval carioca.

De outro lado existe uma reação romântica e conservadora representada pelo desfile da Mangueira. A eleição de Ivo Meireles – que causou uma tensão no mundo do samba por ser um novo (velho) episódio das relações entre o morro e o asfalto travadas pelas diretorias da escola – trouxe uma transição do estilo democrático que regia a escola para um regime centralizador, em que o novo presidente era responsável por todas as decisões. Uma das mais expressivas foi a dissolução do Conselho que escolhia o samba-enredo da escola, transformando-o em um mero conselho consultivo – o presidente ouve a todos, mas ele sozinho toma as decisões. Caminho que parece o contrário dos rumos de profissionalização do Carnaval atual, que a gestão do Elmo – representado por Alvinho e Chininha – tanto representou para a Verde-e-Rosa, que escapando à sina das “grandes de Madureira”, conseguiu se reestruturar, dados os “novos tempos”. Acontece que Ivo tem duas coisas a seu favor: é uma personalidade midiática e, claro, também é compositor. Ivo Meireles gosta de lembrar que quando ganhou seu primeiro samba pela Mangueira todos diziam pelas suas costas que a Mangueira iria cair com um samba que cantava “tem xinxim e acarajé, tamborim e samba no pé”. Mas a Mangueira foi campeã, “com um desfile pobre e simples, mas com alma de Mangueira”. Como compositor e, acima de tudo, como um apaixonado às tradições mangueirenses – dessa forma contrário à visão grandiosa da antiga gestão, sintetizada pelos enormes carros abre-alas acoplados, nunca antes vistos na Mangueira – Ivo Meireles surpreendeu a todos quando escolheu o samba menos cotado da disputa, em contraposição ao samba de um dos principais “escritórios” da atualidade, que tinha a preferência da quadra. Mas Ivo preteriu o samba do escritório não por teimosia ou por uma postura política ou ideológica, mas simplesmente porque o “samba dos paulistas” era o que curiosamente mais se alinhava com o seu novo padrão de gestão: uma gestão menos profissional e mais afetiva. Na semana seguinte à escolha do samba, o presidente disse à comunidade que queria fazer uma oração. E simplesmente recitou a letra do samba escolhido. Ali era o início de uma opção radical, por uma forma de resistência de se fazer carnaval. No carnaval da Mangueira – antítese do carnaval-espetáculo da Tijuca – o musical não estava meramente subordinado ao visual. O samba e as alegorias e fantasias servem ao enredo, e não meramente o enredo é uma “desculpa” para uma enumeração de efeitos especiais. A essência do carnaval passa a ser o canto e o samba, seus itens de base, de fundo, ligados à formação do sambista: suas tradições, o samba como música e como dança. O desfile da escola de samba passa a ser vivido e não visto. O envolvimento do espectador passa a ser através da emoção e não da surpresa ou do espanto. Ou ainda, através do sentimento e da solidariedade. Se na Tijuca o momento mais impressionante é a transformação da comissão de frente em homens sem cabeça (o efeito, o espanto, o espectáculo mágico), o mais impressionante no desfile da Mangueira é quando a bateria e os intérpretes se calam (o silêncio como motor do verso). Recurso simples, ligado ao que poderia ser visto como uma ausência (uma suposta falha no carro de som), torna-se símbolo de uma potência, porque é na falta que descobrimos a presença do outro. Quando o surdo um da bateria da Mangueira para, o coração continua batendo. Quando o surdo um da bateria da Mangueira para, o coração continua batendo. Talvez seja essa a essência do carnaval, ou melhor, essência, mais do que simplesmente do carnaval, de toda uma comunidade, que dribla a precariedade do dia-a-dia com a busca de algo que os una, que vá além do silêncio. Por isso é brava a romântica opção de Ivo Meireles, em tornar o desfile da Mangueira acima de tudo um desfile de resistência.