9/14/2005

É a Vila! É a Vila!

Se ano passado a disputa já esquentou, imagine esse ano. E tinha que ser lá: na Vila Isabel, lá no Boulevard de Noel Rosa e tantos outros. Ali é onde o passado e o futuro do samba se cruzam, e na quadra da Vila está presente hoje o único debate em torno dos rumos do samba-enredo, do que se quer para o Carnaval e para o samba. De um lado e de outro os maiores expoentes de uma ou de outra visão. Luiz Carlos da Vila dessa vez uniu-se ao aliado de maior peso possível: Martinho da Vila. De outro lado, o professor André Diniz, que já faz parte da história dos sambas da Vila, da história desse gênero musical chamado samba-enredo com os sambas que fez a partir da década de noventa. O que quer o Carnaval? O que quer a Vila Isabel? É difícil decidirmos, porque cada um apresenta o que há de melhor em um e outro olhar. Mas o cenário desse “round” está longe de ser perfeito: está longe de ser o melhor samba de Martinho; está longe de ser o melhor samba de Diniz. O samba de Martinho é passadista demais; o de Diniz não consegue equilibrar suas quebras rítmicas e melódicas e representa um “mais do mesmo” que pela primeira vez parece chegar a uma encruzilhada. Se o cenário não é o ideal, é o possível, e em cima dele, a Vila vai decidir se o samba-enredo tradicional merece ou não esboçar uma reação.

um pequeno saldo

Esse ano, em que eu me animei para escrever, a coisa parece que está braba. Uma nuvem negra sobrevoou a inspiração dos gênios: os sambas do Gusttavo e do Toco são completamente dispensáveis. Na Vila, nem André Diniz nem Martinho fizeram jus ao antológico confronto (eu ousaria dizer que se trata do “confronto da década” no samba-enredo). No Salgueiro, a coisa anda cada vez mais triste. Nem na União de Jacarepaguá parece ter algo que se salve... Por enquanto, sem dúvida, o samba de Carlinhos da Paz no Império Serrano e o ótimo samba do Cláudio Russo na Grande Rio. Da Beija-Flor com certeza sairá mais um ótimo samba. Vejamos (ouçamos) mais um pouco...

Samba do Cadu na Caprichosos

Para quem conhece os sambas do Cadu (e eu posso dizer que os conheço como poucos), ver (ouvir) esse samba da Caprichosos é ao mesmo tempo bastante surpreendente e bastante previsível. De um lado é um desejo de se livrar de toda a pressão que ano a ano cai sobre seus ombros em mais uma disputa na Mangueira. De outro, uma falsa tentativa de mudar, enquanto no fundo no fundo não se sai do lugar. Uma ousadia tímida. Quem também já ouviu os seus sambas dos grupos de acesso (em que todo o cuidado com a artesania tão típica dos seus sambas vai pro espaço...) não vai se surpreender com o samba. Então ficamos com a impressão de uma espécie de meio-termo: um samba mais “pra cima”, com a cara da escola, e uma tentativa de fazer contornos mais melódicos e uma ou outra quebra. No fundo acaba revelando a tendência do compositor (que também se revela no samba da Ilha): o conservadorismo melódico. Ou seja, se por um lado o samba confirma os talentos do compositor com um caminho de continuidade, por outro a mudança não conseguiu fazer com que fosse superado nenhum dos limites de suas composições.

Nesse samba, as meias-pausas, de que o compositor tanto gosta, acabam (conscientemente, diga-se) travando o samba, que, por suas características, precisa ter um andamento diferente. O antepenúltimo verso, tanto da primeira quanto da segunda parte, seguram o samba, e dificultam a harmonia, enfraquecendo-o. Ou ainda o refrão do meio. Mas há bons momentos: na letra, uma tentativa de uma metalinguagem (“vou comer este refrão”), um jogo de palavras (“é bom bom provar”); na melodia, o lírico início da segunda parte, ou uma aceleração mais em seguida (“Marrom da cor do pecado”), na moda dos últimos sambas do André Diniz . Mas no todo, fica uma “sensação do mesmo”, porque se essa tentativa de sair da Mangueira e fazer um samba na Caprichosos representa um desejo de voar, Cadu o faz sem nunca tirar os pés do chão, sem nunca perder a obsessão pelo equilíbrio, pelo polimento. Com isso, faz um samba correto, e até bem acima da média do que vai ser visto na escola, mas que representa pouco em termos do que o compositor poderia oferecer.

9/06/2005

“A manga é da boa e vai pro Japão”

“A manga é da boa e vai pro Japão”

Esse verso do samba do Bira Show para a Mangueira 2006 ficou ressoando na minha cabeça. É uma analogia muito feliz, porque sabemos que o carnaval, o samba, hoje é “para exportação”, cada vez mais. Então, hoje, os maiores gravadores de samba são os japoneses. Eles vêm para o Brasil e gravam, por um selo japonês, CDs de samba com a velha guarda das escolas, e o que pintar.

Então que “A manga é da boa e vai pro Japão” acaba tendo um outro, novo, significado...

Mangueira - sambas do Rody e do Rubens

Os sambas do Rody e do Rubens propõem um estilo de samba-enredo diferente do que está aí. Mas o problema é que o diferente, no caso deles, não representa um novo estilo, mas um velho. E "a fila anda", como se diz por aí. Então que esse estilo de samba-enredo não cabe mais nos dias de hoje. Mas marca uma posição, e são dois sambas bem antenados com o estilo de samba da escola nos anos 70. Uma posição saudosista, nostálgica, contra "a evolução da espécie", contra "o rumo das coisas". Propõem um samba que não existe mais. Ou seja, ao invés de propor uma atualização desse antigo estilo de samba, se limitam a repetir o antigo. Então mostram que pararam no tempo. Ou que querem que o tempo volte, o que é impossível. Feliz ou infelizmente.
A gravação dos dois, esp a do Rody, coloca isso de forma muito clara. A gravação é como as gravações antigas. Até o estilo de gravação tentaram resgatar.

Não deixa de ser comovente, e gostoso poder ouvir dois sambas diferentes, poder sentir um pouco um gostinho daqueles sambas de antigamente. Mas - repetindo o bordão -, feliz ou infelizmente, a fila anda...

MANGUEIRA 2006

Talvez de todas as escolas do Grupo Especial a que eu tenha acompanhado com mais proximidade nos últimos três anos é a Mangueira. Por mero acaso ou ainda por motivos que escapem aos estritamente musicais, já que musicalmente a escola me interessa muito pouco, muito menos do que uma Beija-Flor ou uma Tijuca. Ainda assim, dentro do estilo conservador característico da escola, consegue surgir um samba arrebatador como o do Lequinho para 2003, ou o do Cadu para 2005. Ambos perderam, evidentemente, para sambas muito piores.

Mas a safra de 2006, ao contrário do que venho ouvindo por aí, é a melhor em muito tempo na escola. Não que tenha nenhum samba maravilhoso, mas o que impressiona é o equilíbrio. Pelo menos quatro sambas de equivalem e têm totais possibilidades de representar bem a escola na Avenida: são os sambas i) de Lequinho e Amendoim; ii) do BiraShow; iii) do Gilson Bernini; iv) do Rafael dos Santos. Este ano um tradicional finalista (chegou à final nas últimas cinco disputas, ganhando uma delas, na sua quarta final) não inscreveu samba: a parceria de Cadu, o que deixa uma grande lacuna para a competição.

Além dos quatro, outros sambas vêm tendo uma contribuição importante na disputa. Em especial, destacam-se os sambas do Rubens e do Rody, por sua proposta de resgatar um samba típico da escola do final dos anos 70, apesar de seu viés nitidamente passadista. O samba do Bizuca, que tenta inserir quebras melódicas e rítmicas mais ousadas para a escola, apesar de não conseguir manter seu equilíbrio, tem seus momentos especialmente no miolo da primeira parte. O de Jorge Moreira e seu sedutor refrão do meio. O equilibrado samba de Celso Tropical (e seu discreto mas eficiente crescendo na segunda parte), que pelo segundo ano consecutivo vem fazendo sambas coerentes e corretos na Mangueira, embora sem empolgar.

* * *

Lequinho e Amendoim comprovam seu estilo melódico, alegre, atento às necessidades atuais do samba-enredo, mas querendo dar sua contribuição na possibilidade de inserir um maior fôlego nos nuances de melodia e ritmo. Este samba tenta ser uma síntese das participações da dupla ao longo das últimas disputas da Mangueira: o “samba de emoção” que arrebatou a torcida em 2002, o “samba de invenção” com suas variações melódicas e rítmicas de 2003, o “samba de resultado” de 2005. Encurralados entre seu projeto pessoal e as necessidades pragmáticas da disputa, a dupla tentou nesse samba uma espécie de meio-termo, mas de qualquer forma o samba é muito melhor que o burocrático samba do ano anterior. Ainda que esbarre no tradicional calcanhar-de-aquiles da dupla (os problemas de letra, especialmente relativos à repetição de palavras), o samba para 2006 exala a energia tradicional dos sambas da parceria, no vigoroso crescendo do refrão do meio, na ousadia dos três refrões. Sua habilidade em compor variações melódicas de forma articulada pode ser vista, em seu mais alto nível, no refrão final, com o verso “a fonte da vida esperança nos dá”. A alegria no percurso pelo Rio São Francisco e a generosidade do olhar da dupla lembram a poesia do samba de 2004, que mal chegou à final. Uma espécie de síntese que mostra a coerência da dupla de compositores.

Depois de uma pausa em 2005, a parceria de Bira Show volta à disputa na Mangueira com um samba swingado repleto de maias-pausas e de modulações melódicas típicas do samba anterior. Herdeiros de uma samba-enredo mais tradicional, este samba é o único que segue a linha deixada pela parceria do Cadu, embora o Bira tenha sido na verdade um dos maiores críticos do desempenho do samba vencedor em 2004. O equilíbrio, o bom gosto da letra (sem dúvida a melhor letra entre os sambas concorrentes), o esmero pelo polimento das arestas, a dedicação às meias pausas e ao ritmo que tende ao mais cadenciado credenciam o samba como um dos mais típicos do estilo melodioso da Mangueira. Os autores também se destacam por terem feito uma leitura bastante particular do enredo, íntima e ligeiramente melancólica (“vinho pra esquentar o coração” ou os contornos da melodia “Eh! Violeiro/ Violeiro,cantador”).

O samba de Rafael dos Santos (que integrou a parceira do Cadu em 2005) e parceiros possui um olhar diverso, atípico da Mangueira: um samba menos cadenciado e mais próprio para a disputa. Com isso, surge como azarão, quase como o samba do Lequinho em 2002. No entanto, o samba é bem articulado, a letra não é pequena (como por exemplo o do Bizuca), possui um refrão do meio envolvente e algumas pequenas quebras de ritmo bem eficientes (o tom baixo do início da segunda parte e a crescida após “tem manga no pé”). A segunda parte do samba surpreende e mostra que o samba não é mero “arroz de festa”: conjuga seu olhar por um samba mais leve e de empolgação sem perder a coerência. Um azarão que merece ser observado mais atentamente do que vem sendo comentado e que pode surpreender na reta final. E que cumpre um papel importante, mostrando um estilo diferente de samba-enredo dos demais competidores.
Por fim, o samba de Gilson Bernini, um velho conhecido da escola, por ter ganhado várias disputas com a parceria de Clovis Pê e Marcelo D´Aguiã (outro que sumiu das disputas). Bernini, que adaptou seu estilo “moleque” dos sambas do Jacarezinho (“olha o Pluft aqui, olha o Pluft ali”) para uma melodia balanceada, mais adequada para o estilo da Mangueira, comprova seu olhar pela melodia, com contornos melódicos atípicos que são retomados com diversos paralelismos entre os refrões e as duas partes do samba. Destaca-se também a poesia do início da segunda parte. Trechos de grande inventividade melódica como “A carranca da Mangueira vai passar”, “E tem manga sem fiapo pra saborear” e “Banhou de fé o coração” mostram o estilo característico e a visão de samba-enredo do compositor.