2/16/2009

Sambas 2009

Portela 2009

O samba da Portela, fato comum aos últimos sambas do Junior Escafura, prima pela precisão, pelo acabamento. Não tem um único defeito: descreve o enredo com precisão, tem variações melódicas adequadas, pausas para o canto ("Liberdade"), momentosl evemente acelerados para mesclar o ritmo. Tudo com extremo bom gosto, trabalhado com enorme cuidado. Nisso lembra a linha dos sambas do Cadu e Gabriel. Soluções de letra de grande elegância e poder de síntese ("Das trevas renasce o amor", "palácio da saudade"), uma variação rítmica de inventividade ("São vinte e uma estrelas que brilham no meu olhar - Se eu for falar da Portela não vou terminar" quando os versos são estruturados num ritmo que dá uma idéia de enumeração longa, isto é "são muitos títulos e há tanto a se falar sobre a Portela…").

Tudo perfeito, tudo de muito bom gosto. Só tem um detalhe: acontece que o enredo fala de amor, e o amor (para mim pelo menos) é risco, é entrega, é paixão, é algo que não tem medidas, é desmedido, desmesurado. E esse samba da Portela é tudo, menos um samba apaixonado pela possibilidade de abrir seu coração (o que no fundo, diga-se de passagem, é a essência do samba). Ou seja, um samba técnico, frio, extremamente correto e preciso para falar de um sentimento como o amor.

Viradouro 2009

Eu gostei do samba da Viradouro, que tem a cara dos sambas do Flavinho Machado, especialmente pelo "tom afro" de parte do enredo. Falando em enredo, é ótimo ver o Milton Cunha de volta mas sinceramente achei o enredo um tanto maionésico, misturando o tema afro com um tom ecológico meio institucional sobre a Bahia.

O ponto forte do samba são os dois refrões, em que o samba explode, com uma melodia irresistível (Um dia oxalá iluminou), apesar de um pouco deja vu em relação a outros sambas da dupla. Gostei especialmente do refrão do meio, que talvez seja o refrão mais bonito do Carnaval.

A primeira parte tem um ritmo gostoso e suave, típica dos sambas da parceria. Mas a segunda parte é irregular, até um final que chega a ser de mau gosto, pois o samba embola e a própria melodia vai pro espaço ("A água deixa o céu e se abraça com o chão - Renova a energia sob as bençãos de um trovão - Vermelho e branco que paixão"). Além disso, tenho dúvidas se a letra consegue descrever todo o enredo, especialmente em toda essa parte técnica, podendo perder pontos por isso.


Tijuca 2009

Não consigo ver no samba da Tijuca tudo isso que muita gente está dizendo. Acho um samba mais do mesmo. Consigo ver méritos na primeira parte, na melodia e em dois versos que eu gosto bastante, porque tem uma poesia simples (O meu Borel visto de cima é mais bonito - eu vou alçar ao espaço). O refrão do meio também tem momentos de singeleza.

Mas a segunda parte eu acho meio fraca, especialmente o verso (De heróis das estrelas, um céu). Acho que é um samba bom pro desfile, especialmente pro desfile leve e irreverrente da Tijuca, mas em termos de samba-enredo em nada acrescenta.

Além disso, acho MUITO triste que os compositores se dediquem mais à "filial" do que à "matriz", dados os bons resultados da Tijuca recentes (i.e mais chances de voltar às campeãs e receber mais grana…).


Mangueira 2009

O Lequinho está estabelecendo um novo ritmo, uma "nova cara" (colocando nos termos do enredo) aos sambas da Mangueira: ao invés do samba cadenciado, melódico, da emoção dos sambas típicos do Hélio Turco, agora a Mangueira entra na era do samba competitivo. De indiscutível primor melódico e em termos de letra, o samba da Mangueira é guerreiro, como "a cara da escola" de agora, mas falta a sofisticação, a inovação, o tom surpreendente de alguns dos sambas do Lequinho que tanto fazem falta. Aqui há uma única passagem (Cada lágrima que já rolou - Fertilizou a esperança - Da nossa gente valeu a pena). Ainda assim, é incrível como o Lequinho consegue moldar uma energia para o samba, recurso que esbarra na marcha ou mesmo no jingle, mas que ele consegue trabalhar com um certo bom gosto, trazendo um certo "axé", uma "pegada" para o samba ("valeu a pena", "sou povo, sou raça", "sou a cara do povo"). Recursos que são a síntese do que se busca para o samba da Mangueira, que eu particularmente começo a torcer o nariz, embora reconheça sua eficiência. O cuidado em compor as parcerias e moldar alianças também tem se mostrado a marca do Lequinho na Mangueira, no aperfeiçoamento desse "estilo competitivo" que é principalmente a luta da escolha do samba na quadra, especialmente numa escola tão competitiva (e política) quanto a Mangueira, mas é curioso percebermos que a mudança dessas parcerias pouco alterou o seu caminho particular em termos da sua visão de samba-enredo.

Sambas 2009: Beija-Flor

Algumas mensagens sobre os sambas de 2009 do Grupo Especial... a primeira é uma bem informal sobre o belo samba da Beija-Flor

Beija-Flor 2009

Com um pouco mais de calma, escrevo aqui sobre um tema: o samba da Beija-Flor de 2009. Fui ouvir o samba do Tom Tom só depois do resultado final, e fiquei um pouco desconfiado dada a reação de todos de surpresa, pois o samba do Claudio Russo seria antológico.

Mas ao ouvir o samba eu tive uma surpresa, pois fiquei fascinado com a beleza do samba!! É um samba mais leve que geralmente a Beija-Flor traz, e achei um ato de generosidade a vitória dessa samba, de forma que confesso que fiquei emocionado ao ouvi-lo. Isso somado à beleza da gravação (para mim é indiscutível que foi o samba mais bem gravado de todo o CD, com andamento gostoso e acordes bastante bonitos...)

Tecnicamente o samba tem algumas falhas, e me surpreende que o Laila tão perfeccionista tenha se rendido ao samba, mas de fato o samba é irresistível. Há muitas repetições da palavra ”banho” ou seus derivados. No refrão final os versos “Embala eu babá feito um rio de magia / Que deságua luxo e cor” embolam um pouco, etc.

Mas, como dizia, o samba é irresistível e que bom que ganhou! Há soluções tão simples e tão bonitas que me emocionaram nesse samba. A letra é fabulosa, tem um olhar leve sobre o enredo, até mesmo descontraído, com tiradas geniais “O banho foi excomungado”. Há versos simples, mas de grande beleza (adorei os quatro versos finais da primeira parte e o refrão do meio. Adoro o trecho “As águas rolaram/As mentes lavaram” mesmo sabendo que falta um complemento). A letra é de enorme poder de síntese. Adorei o fato de um francês descobrir a importância do banho. A melodia é rica, tem variações, espaços para o canto, etc. O samba não é tão sofisticado quanto o da Mocidade que é o meu preferido, mas de longe é o samba que mais me fascinou nesse ano de 2009. E justamente esse samba, dessa forma, vir da Beija-Flor eu achei que foi um gesto de generosidade do Laila, pois ele não se importou com o tecnicismo da letra e preferiu um samba que tivesse o espírito do desfile e achei isso muito bonito.

O samba do Claudio Russo é bom, mas preferi esse do Tom Tom. A letra dos dois nem se compara.

União de Jacarepaguá 2004

texto sobre a obra-prima que foi o samba da União de Jacarepagua em 2004. Texto meio confuso e longo, mas que pelo menos registra a obra-prima que é este samba. (em 16/02/2009)

União de Jacarepaguá 2004

Todo o samba-enredo contemporâneo se debruça sobre um dilema. Na questão da letra, de um lado, uma necessidade de ser descritivo a ponto de abordar em sua exposição a integralidade do enredo e a disposição (em alas e alegorias) da escola na Avenida; de outro, de ser sintético e com expressões fáceis para tornar o samba de mais rápida assimilação. Na melodia, por um lado ser um samba de apelo cada vez mais popular, por outro, ser uma samba com mais nuances melódicas e repleto de meias-pausas e variações rítmicas em relação ao samba da década de 80, que seguia muito mais à risca suas convenções particulares (tanto rítmicas quanto melódicas).

Este samba da União de Jacarepaguá é uma verdadeira jóia por vários aspectos, entre eles o de ser uma reflexão profunda sobre esse hiato. Seu complexo projeto é na verdade o de reunir as duas tendências, resgatando um samba-enredo de origem mais clássica (até mesmo o samba dos anos 60), mas acrescentando-lhe uma roupagem contemporânea, seja no sentido de presentificar suas formas seja como meio de compatibilização às necessidades atuais do desfile e da disputa de samba-enredo dentro da escola. Temos então um samba de 24 longos versos, além dos oito que compõem os refrões, que descreve perfeitamente o enredo de forma clara mesmo para quem está sendo apresentado a este pela primeira vez, integralmente tomado por expressões simples e objetivas, com dois refrões fortes (especialmente o do meio) típicos dos sambas atuais. Por isso, na verdade é um samba popular, que só não se revela ainda mais devido à sua extensão, mas que não busca as quebras rítmicas e melódicas de uma vertente do samba-enredo atual (Gusttavo, Lequinho, Wilsinho Paz, etc.). Ou seja, não é propriamente um samba de invenção, no sentido de buscar novas formas de expressão para o gênero, mas é um samba de continuidade, de diálogo com uma cadência rítmica mais típica dos anos 80 e de uma estrutura de letra dos anos 60. Fato este que está longe de desmerecê-lo, pois sua vocação é exatamente esta: o de mostrar que não está necessariamente dissociado do apelo popular um bom gosto melódico e um requinte de composição. Por outro lado, quando dizemos "popular", pensamos na comunidade, enfim nas pessoas que tem uma certa intimidade com o gênero, e não nos "turistas" que eventualmente compõem o público da Sapucaí ou que desfilam nas escolas. Ou seja, popular é o público que freqüenta os desfiles do Grupo de Acesso, tipicamente diferente do que atualmente assiste ao Grupo Especial.

Mas se não é um "samba de invenção" e se demonstra uma vocação mais popular, isto não implica em absoluto que o samba seja de pouca criatividade. Ao contrário, este samba de Jacarepaguá se revela como um verdadeiro assombro em termos de sua força arquitetônica, ao construir em cada verso e cada nota, sem nenhuma necessidade de precipitação que o leve para um desfecho sorrateiro, uma leitura do enredo de supremo bom-gosto e requinte: não há uma única palavra ou acorde que não esteja perfeitamente encaixado no samba ou que destoe de um conjunto que suplanta sua simples expressão individual.

O ápice dessa tendência está na extraordinária segunda parte do samba, que - sem nenhum exagero - passa a ser peça obrigatória em qualquer antologia de samba-enredo. Chega-se quase ao limite das potencialidades de um samba atual: está para os nossos tempos assim como o que a "Aquarela Brasileira" representou para os seus. Nos primeiros cinco versos apresenta-se a diversidade das belezas naturais do Rio de Janeiro, com destaque para a singeleza das variações melódicas dos dois primeiros versos (observe, por exemplo, como, no primeiro verso, há uma gradação do agudo ao grave de extrema maestria e habilidade de composição, e como no segundo, se foge,
tanto em termos rítmicos quanto melódicos, da mera repetição do verso anterior). Em seguida, o samba passa a ser narrado em primeira pessoa, com o uso reiterativo de "sou" ou "eu sou", mas nunca como mero espelho de pobreza vocabular, e sim como recurso de expressão, sendo que a melodia nitidamente aponta para a consciência da repetição como efeito expressivo. Os três primeiros versos, de rara beleza melódica, poderiam apontar para um crescendo muito abrupto, tornando, nesta progressão, o samba agudo demais em seus versos finais (vejam por exemplo o caso do samba da Mangueira de 1992, sobre Tom Jobim, em que o crescendo é linear). Mas os autores no verso seguinte elaboram um recurso de extrema sofisticação, trazendo de novo o samba para o mais grave, para em seguida, dois versos adiante, novamente retornar aos acordes mais agudos, revelando a enorme variação melódica da obra e a estratégia dos compositores.

Apostando num tipo de composição que caminha na contramão do "trash enlatado" ou do fast food que contamina os desfiles atuais, revelando a destacada ousadia e coragem tanto do Presidente da escola quanto de sua ala dos compositores, a União de Jacarepaguá, em seu terceiro ano consecutivo no Grupo A, aposta num mesmo estilo refinado de samba-enredo, em consonância com os dois anos anteriores, consolidando uma identidade musical para a agremiação. Este samba, da mesma parceria do também belo samba de 2002 (sobre o sonho de voar), potencializa vários dos avanços do verdadeiro tour de force estilístico que era o samba de 2003, de outros autores, confirmando um trajeto de continuidade e de influência mútua que revela que, ao que tudo indica, os deuses da inspiração sopram para as bandas de Jacarepaguá.

Marcelo Ikeda
23/01/2004.

Unidos de Bangu 1980

Amigos,

deparei-me recentemente com esse desconcertante samba-enredo da Unidos de
Bangu, de 1980. "Juparanã, a lagoa encantada". Sua simplicidade é
comovente:a melodia é linear, os dois refrões com dois versos de igual
melodia. No entanto, é um típico samba-enredo: simples, despretensioso e
mágico.

A idéia dos compositores é a mais típica da essência do samba e do carnaval.
A lagoa Juparanã, quando tudo apontaria para parecer simples como qualquer
outra, de repente se vê modificada: é uma fonte riquíssima, "reino de anões
e fadas", um "mundo de fantasia". Nesse "mergulho", termo felicíssimo, que
coroa essa simbiose da idéia da lagoa em si com uma idéia de inserção
metafórica, a superficialidade comum do nosso dia-a-dia se vê transformada
com o reino de sonhos do nosso Carnaval. A Sapucaí (ou melhor, a Presidente
Vargas, porque o desfile foi anterior à sua construção) não deixa de ser uma
lagoa encantada.

Ao final, numa ingenuidade bucólica que se torna comovente por sua singela
simplicidade, a profecia do samba se realiza. A rima fácil, até de um gosto
duvidoso, é usada assim mesmo, porque acima de tudo fecha a idéia do samba:
"Você vai ver". Qualquer um que ali esteja também pode ser uma das ninfas
douradas que se banham em Juparanã. O espectador torna-se parte da história
e banha-se no cenário iluminado da simples, mágica e profética história da
escola de Bangu.

Aí vai a letra do samba: estou devendo a relação de compositores...




Juparanã, lagoa encantada
Palco da mitologia
Reino de anões e fadas
Mundo de fantasia
Mergulhei na poesia
De raro esplendor
Minha escola mostra agora
A história que Pai Velho me contou

Juparanã, Juparanã,
A lagoa encantada protegida por Tupã

Lindas e frondosas matas
Cachoeiras e cascatas
De mistérios e magia
Ninfas douradas
Permeiam a lagoa encantada
Num cenário de festa
Os pássaros compõem a sinfonia
O arco-íris ao amanhecer
Anuncia um novo dia

Você vai ver, você vai ver
Boitatá e caipora e o saci pererê

Viradouro 2003

Texto sobre o samba do Gilberto Gomes e Gustttavo na Viradouro em 2003, um belíssimo samba, o último grande samba da parceria.

Viradouro 2003

Há sambas que são tão singelos que quase impedem que sejam cantados. Esse é o caso do samba da Viradouro deste ano. A melodia é um acalanto: ficamos estáticos, boquiabertos, não conseguimos cantar ou sambar. Apenas deixamos que um arrepio de alma prossiga conosco. É um samba que nos deixa completamente impotentes, porque só nos resta ouvir: é quase como receber uma prece. É também um samba de homenagem, e é tudo o que uma homenagem pode ser: um abraço afetuoso, uma palavra de carinho. Depois de dois sambas de grande rigor formal e força inventiva, a dupla de compositores Gilberto Gomes e Gustavo, agora hexacampeões pela escola, se rendeu ao enredo, curvou-se à relevância da homenagem. Todo o criterioso trabalho labiríntico de construção formal típico da dupla se rendeu à supremacia da melodia, à necessidade do samba também ser um ato de devoção e não apenas de construção. Com isso, a dupla parece ter avançado doze vidas, com a consciência da necessidade de uma revolução dentro da revolução. É esta afetividade respeitosa que o torna uma das obras de maior maturidade do Carnaval dos últimos tempos. É revelar-se profundamente humano; é colocar todo um trabalho formidável de criação, um esforço tamanho de composição muito abaixo de seu tema, muito aquém do que o Carnaval pode despertar nas pessoas que o vivem. É por meio deste exercício de humildade que a dupla de compositores, agora com o apoio dos novos parceiros, atingiu o que parecia impossível dadas as suas composições anteriores: compor o samba como um ato de um desnudamento.

Marcelo Ikeda.

samba concorrente Mangueira 2003 - Lequinho e Amendoim

Texto muito bacana que escrevi sobre o antológico samba de Lequinho e Amendoim que perdeu a final na Mangueira para o Carnaval de 2003. (em 16/02/09)


O Carnaval de 2003 poderia ser embalado por um samba quase antológico: é o samba concorrente na Mangueira pelos compositores Lequinho e Amendoim, que buscavam um bicampeonato, já que o samba da escola em 2002 foi de autoria da dupla. Ao contrário do samba de 2002, que, apesar de ter um papel fundamental no campeonato da Mangueira, esbarra em inúmeros chavões melódicos e lugares-comuns, ilustrando de forma apenas convencional o enredo sobre o Nordeste, desta vez trata-se de um samba de riqueza singular e, dentro de seus limites, inovador, pelo nível de envolvimento da parte dos compositores, um trabalho de entrega pessoal, com uma carga de interioridade quase inacreditável.

Para traduzir a bela sinopse da escola, que contou a saga em claros tons épicos, os compositores optaram por uma linha ousada. Mas o que torna sua escolha particularmente comovente é que toda a linha melódica do samba se baseia numa idéia não apenas de fé e perseverança, mas essencialmente de iluminação. Com isso, toda a estrutura do samba se baseia num percurso, num caminho místico que não tarda a se desvelar numa verdadeira procissão em busca de uma redenção.

Pulsando como um verdadeiro coração, já que o amor é um dos frutos mais marcantes desse caminho de busca, o samba se equilibra entre um conjunto de sístoles e diástoles, com um nível de ambigüidade raramente visto num samba-enredo, especialmente em sua primeira parte. Entre os tons altos e baixos, entre os crescendos e diminuendos, o samba percorre os caminhos sinuosos e desiguais da narrativa épica do povo egípcio com um vigor quase profético.

O início do samba já ilustra perfeitamente essa opção. “Mangueira...canta.../A saga de um povo sonhador/Mangueira prega /as palavras do Senhor ô ô ô”

Nesses primeiros versos, com destaque para o trecho “Mangueira prega”, destaca-se uma idéia de repetição, que o torna quase como uma ladainha. O “ô ô ô” final, mais que completar o decassílabo, assim como o segundo verso, já apresenta o painel de ambigüidade melódica, em tons baixos, que caracteriza toda a primeira parte do samba. Aí também surge a figura do narrador épico, como uma espécie de “contador de histórias”, que confere ao samba perfeita coerência em termos de ponto de vista com a sinopse. A Mangueira “canta uma saga” e “prega as palavras do Senhor”. A incorporação da ladainha na estrutura dos versos iniciais do samba, como um caminho para uma busca divina, nos faz lembrar o mesmo recurso de “Círio de Nazaré” (São Carlos 1975). Mas há uma pequena diferença, muito significativa. Enquanto no samba de São Carlos o modelo era a dúvida, aqui há a certeza deste caminho: como um percurso histórico, é a saga de um povo que já teve seu final, a redenção. Enquanto os romeiros do Círio de Nazaré clamam por sua salvação (Ó Virgem Santa, olhai por nós/ olhai por nós, ó Virgem Santa / pois precisamos de paz), o narrador épico da Mangueira ao contar a história já revela sutilmente conhecer a vitória e as virtudes de seu povo.

Dessa forma, logo a seguir do começo tenebroso, a oscilação, o crescendo, o tom levemente mais alto. “E derrama em verde e rosa a história / em poesia”. Mas logo em seguida, o caminho de volta, a dúvida. “Que ao povo oprimia” E de novo surge a visão profética, a iluminação. “Mas existia um clamor e um dito ecoou liberdade”. Até terminar a primeira parte com uma síntese das sístoles e diástoles da primeira parte do samba: “Uma estrela brilhou, anunciando o libertador”. Neste verso de melodia complexa, seu tom baixo e levemente sinistro revela de forma muito sugestiva o berço do nascimento do redentor: um mundo de trevas e lama. A última sílaba no entanto marca de forma profética uma espécie de revelação (li-ber-ta-DOR).

Com a apresentação do narrador épico, o estabelecimento do percurso da redenção como uma espécie de ladainha e a descrição do mundo tenebroso que geriu o nascimento do salvador, o samba está pronto para seu primeiro refrão. Após o anúncio do libertador, os princípios da fé podem afinal ser descritos. Se o refrão do meio tende a ser em geral apenas uma espécie de passagem para a segunda parte, aqui todos os pilares desse novo mundo anunciado são expostos pelos compositores. Como uma verdadeira declaração de princípios, é um refrão atípico, com cinco versos bastante longos. Mas não deixa também de ser uma perfeita transição, pois a partir da segunda parte o samba sofre uma brutal transformação.

Após o estabelecimento do tema central do enredo e as idéias do salvador, o samba abandona sua poesia do mistério e da ambigüidade para se revelar inesperadamente lírico. Os versos mais curtos, límpidos, seu tom mais alto, desvelam um típico samba mangueirense. Num crescendo contínuo, o samba coroa o progressivo caminho de vitórias e de conquistas até seu ideal final.

A partir do verso “Brasil!”, o samba incorpora uma ternura e uma euforia quase impensáveis quando ouvimos os taciturnos versos de abertura do samba. Nessa parte final, os compositores fazem uma associação muito feliz entre um tripé que percorre toda a estrutura do enredo: Egito/Brasil/Mangueira. Por que a trajetória longínqua do povo egípcio poderia interessar ao Brasil de hoje? Ou ainda, ao Carnaval de hoje? Qual a harmonia entre esses ideais e o desfile da Mangueira? Sim, porque queremos do Brasil um mundo de paz e esperança. Ou ainda, sim, porque queremos que das dificuldades do dia-a-dia da humilde comunidade da Estação Primeira surja um caminho de vitória que se confunda com o próprio desfile da escola na Sapucaí. O crescendo da segunda parte do samba se torna então um canto poético e apaixonado em torno da sua escola de coração. E do épico, o samba se faz lírico. Não por acaso, é em termos melódicos onde se concentra o clímax do samba.

“Mangueira...
Meu mandamento é te amar cada vez mais
Hoje o meu samba é a paz,
e o mundo é mais feliz”

Mas a grande declaração de amor dos compositores ainda estava para ser feita. O refrão final da saga mangueirense, o mesmo caminho trilhado pela apaixonada visão dos compositores, se encerra com um tom entusiástico absolutamente desconcertante. Com uma entrega passional e uma sinceridade estarrecedora, afirma-se, às claras, sem nenhuma preparação ou qualquer recurso literário que esconda suas intenções, “eu sou feliz!”. E não satisfeito, inclusive desprezando a falta de métrica do verso de oito sílabas, repete-se mais uma vez: “eu sou feliz!”. Não há então como fugir da sentença, fingir não ouvir, tentar que os versos nos passem despercebidos. Numa objetividade cega, num grito de otimismo, simples, profundo e poético, os compositores encerram sua missão final: assim como a saga descrita, o samba composto por eles também chega ao seu final apoteótico. E quem acompanha o samba chega à sua redenção, recebe sua profética iluminação. Nada mais típico de um samba tipicamente mangueirense.

* * *

Ao nascer de uma ensolarada manhã de domingo, a Mangueira finalmente anunciava seu samba para o Carnaval de 2003: era o de Marcelo d´Aguiã, Bizuca, Gilson Bernini e Clóvis Pê. Estava selado o destino do samba de Lequinho e Amendoim: o esquecimento. Daqui a algumas semanas, quando a escola grava sua participação no CD das escolas de samba, e inicia seus ensaios, ninguém mais se lembrará deste memorável samba, que, à sua maneira, seguindo um projeto muito pessoal de samba-enredo, incorporou na própria estrutura do samba um caminho de redenção.

Os ativos mangueirenses que freqüentavam todos os sábados a quadra da escola diziam que o samba de Lequinho e Amendoim era uma decepção em relação ao samba do ano anterior, diziam que havia algo no samba que “não casava, que não se encaixava”. Claro, não casava com um projeto de samba-enredo que prima pelo trivial, pela emoção fácil e pelo discurso linear, que cisma em oferecer de cara todas as suas chaves. Mas o que é particularmente interessante é como, dadas todas as mudanças de tom, este projeto se revela em inteira continuidade com o samba de 2002: é o início que fala em “Mangueira canta”, é o trabalho invulgar com o refrão do meio, é o percurso como caminho lírico de paixão e iluminação, é até mesmo o bordão (quase inaudível desta vez) “bate no peito e diz”. Ou como, entre todas as descontinuidades e ambigüidades tão próprias ao tema em questão, surge uma visão perfeitamente mangueirense. Mas desta vez, até pela unanimidade em relação aos frutos do samba de 2002, surgiu uma postura mais corajosa e arrojada da dupla de compositores. Rebeldia sutilmente repreendida pela conservadora visão da escola. Uma pena. Dado o potencial impacto que um samba vencedor da Mangueira pode provocar em termos de moldar um certo inconsciente coletivo, não seria exagero afirmar que esse samba poderia ter uma influência marcante nos rumos futuros do samba-enredo. Só nos resta torcer que a dupla não acabe retroagindo para uma visão mais conservadora na próxima disputa. Ou então que troquem de escola.

* * *

A diferença entre o tom do samba de Lequinho e Amendoim e o do vencedor é clara. “Surge um caminho de luz pra mergulhar na história”. Enquanto a dupla olha sempre para o futuro, para o grupo vencedor, o caminho é o passado.

Marcelo Ikeda
14/10/2002

Mangueira e Vila 2004: semelhanças e diferenças

Mangueira e Vila 2004: semelhanças e diferenças

Os sambas da Mangueira e da Vila Isabel para 2004 têm vários pontos
em comum: ambos são homenagens a localidades (seja Minas ou Paraty),
em que se usa uma idéia de percurso como resgate às riquezas
naturais e culturais da região. Ambos são compostos por talentos de
uma nova geração de compositores que, entre um acorde e outro, nunca
se esquecem das necessidades competitivas do Carnaval atual. Mas
talvez, do ponto de vista estilístico, mais interessantes que as
semelhanças sejam as diferenças, especialmente quanto à abordagem do
enredo usada pelos dois grupos de compositores.

No samba da Mangueira, a viagem pelas riquezas de Minas se torna
quase um pretexto para uma revisitação austera e melancólica a um
passado distante e perdido. A crise se expressa através de uma
saudade, a partir de uma impossibilidade de resgatar um tempo áureo
de belezas vistas de um presente em que existe apenas um rastro, um
resquício de um passado glorioso.

Enquanto o samba da Mangueira investe na dor desse percurso, para a
Vila ""é doce chegar até lá"". Se na Mangueira o caminho propicia o
recurso à memória e ao passado, no samba da Vila a distinção entre
passado e presente se desfaz, simplesmente não vem ao caso.
Percorrer o caminho passa a ser uma espécie de ressurreição: é como
se estivesse sempre percorrendo-o pela primeira vez. Daí provém a
enorme energia e vigor do samba da Vila.

A melodia é extremamente significativa para constatar a diferença de
visão dos compositores: é só comparar ""as trilhas bordadas em ouro /
levaram tesouros a caminho do mar"" com ""tanta beleza em Paraty / me
embriagou e saí por aí"". Dois trechos de alta riqueza melódica, mas
com pontos de vista estilísticos completamente distintos.

Talvez a principal diferença entre ambos seja que enquanto o samba
da Mangueira trilha esse passado por uma estrada de ferro, o da Vila
percorre por um ""veio azul e branco"". Ou que enquanto a Mangueira
trabalha com uma idéia de destino (""levaram tesouros a caminho do
mar""), o da Vila busca um ideal de liberdade (""que construiu a
liberdade em seu lugar"").

Marcelo Ikeda
24/01/2004

Tutiuti 2003: Paulo Barros

Um texto interessante que escrevi sobre o antológico desfile do Paulo Barros pela Tuiuti, isso antes de ele se tornar a estrela que hoje é (em 16/02/09)

Tuiuti 2003

Após uma comentada disputa de bastidores com a Vila Isabel, o Tuiuti recebeu o “de acordo” dos herdeiros do pintor para realizar seu enredo sobre Cândido Portinari no ano do centenário de seu nascimento. A responsabilidade era grande. Um dos maiores pintores modernos brasileiros, Portinari, em articulação com os princípios artísticos da Semana de Arte Moderna de 1922, traçou em suas telas um retrato social de um Brasil muitas vezes rural e interior sem abrir mão de uma estética experimentalista. O desafio era grande. A nova diretoria, que assumiu a escola recebendo um legado impressionante da diretoria anterior, conseguindo levar a escola ao Grupo Especial, rompeu com Paulo Menezes, a princípio ideal para um enredo de tal porte, contratando Paulo Barros, carnavalesco mais conhecido pela trajetória nas escolas do grupo B e de seu trabalho com materiais recicláveis.

O desafio era grande, especialmente em se tratando de uma escola do Grupo de Acesso, com recursos limitados para traduzir tão ambicioso enredo. Entre tantas outras questões que o novo carnavalesco teria que se defrontar estavam, por exemplo, a das relações visuais entre a pintura erudita e a representação popular, as relações do pintor com o modernismo através de seu papel da ruptura contra o academicismo versus a estandardização dos atuais desfiles das escolas de samba, e, especialmente, a visão particular do pintor em relação ao Brasil e em especial ao olhar social de suas obras.

Mas se o desafio era grande, Paulo Barros conseguiu realizar o mais criativo desfile do Carnaval deste ano, exatamente por optar pelo seu oposto, negando o desafio, e visualizando a homenagem a Portinari com extrema simplicidade e em tons menores.

Ao contrário da opulência de um desfile com um olhar crítico sobre o painel social do Brasil ou ainda de uma reavaliação do processo artístico, Paulo Barros optou pela emoção ao invés do discurso, optou pela intimidade ao invés do olhar crítico. As mazelas da população de baixa renda revelam-se elementos de criação e, por meio do processo artístico, de transfiguração das dificuldades do dia-a-dia. Ao invés de valorizar Portinari como símbolo modernista ou como propagador da cultura brasileira no exterior, Barros preferiu vê-lo como o menino de Brodósqui, criando um enredo quase infantil. Simplificando os conflitos, rompendo um suposto academicismo, Paulo Barros percebeu que o Brasil das telas de Portinari é lindo, simplesmente porque é Brasil. E, com isso, acaba se revelando profundamente ligado com as raízes do Carnaval. É a origem modesta e a representação popular, é a presença do processo artístico, é a possibilidade do “ser-rei-por-um-dia”. Em suma, Portinari é um brasileiro, porque em suas telas, em sua vida, tudo é Brasil, tudo é carnaval. Fundindo todos esses aparentemente díspares elementos numa grande festa, Paulo Barros realizou um desfile memorável, porque, ao negar-se como discurso, ao negar-se como olhar, o desfile do Tuiuti acabou se revelando paradoxalmente tudo isso: um olhar profundo sobre a brasilidade e sua representação, dados os limites dos atuais desfiles das escolas de samba.

E é só então, só a posteriori que entendemos as escolhas de Paulo Barros, desde a concepção da sinopse até a disputa do samba-enredo. Entendemos porque o belíssimo samba do Noca foi preterido pelo “samba-de-sempre” de Fernando de Lima e cia. Sim, o samba de Fernando de Lima encantou e surpreendeu toda a avenida, exatamente por sua sincronia perfeita com o enfoque do enredo. Fernando de Lima entendeu como ninguém o aspecto mágico do enredo, sua tendência ao infantil, ao universo de “sonhos e fantasias”. Opções melódicas como a dos versos como “Retratos da vida que em cores vivas eu descobri”, ou ainda “Vem pincel mágico iluminar / os meus versos e destilar / cores, fantasias” mostram como a estética do “falso encantamento” ou da “melancolia do enternecimento” que vem caracterizando os últimos sambas do veterano compositor se incorporam às “cores vivas” do enredo, sintetizando o tom misto entre o terno e o caloroso escolhido pelo carnavalesco.

Facilitando o acesso a um enredo sobre uma personalidade não-popularesca, mas popular, Paulo Barros, em sua explosão de emoção e alegria, deu talvez a maior das lições do Carnaval 2003, rompendo muitos dos mitos da atual concepção do desfile de Carnaval.

Marcelo Ikeda
30/06/03.

Santa Cruz 2003

Santa Cruz 2003

Após uma tumultuada disputa de bastidores com a Vila Isabel para assegurar sua ascensão ao Grupo Especial, a Santa Cruz abre o Carnaval do Grupo Especial de 2003 expondo um dilema extremamente característico do Carnaval desse ano: a correção ou a espontaneidade. Entre essa fissura, a Santa Cruz, que tantas vezes já foi injustiçada no Grupo de Acesso por seguir um caminho próprio, preferiu a primeira opção, preferiu adaptar-se às regras do jogo. Da mesma forma que os últimos desfiles da escola no Grupo de Acesso, a Santa Cruz optou pelo desfile técnico, em que nada poderia lembrar a Santa Cruz de meados da década de oitenta e início de noventa, justamente quando a escola conseguiu retomar alguma projeção. Nada poderia recordar uma escola que já teve Aroldo Melodia como puxador, que teve refrões como “quem não tem quiabo oferece caruru”, ou que já falou dos “bêbados ilustres” do Brasil, sempre com muito bom humor. Nada poderia resgatar a picardia do retorno da Santa Cruz ao especial, depois de quase vinte anos, com a irreverência do Pasquim e do “gip gip nheco nheco”. Após algumas grandes frustrações, como uma falta de luz, como a não-repercussão do desfile que traz de volta uma mulher ao posto de intérprete – e ninguém menos que Leci Brandão – a Santa Cruz empenhou sua última cartada em seu retorno ao grupo principal em 1997. Num desfile cheio de energia e vibração, com um samba-enredo leve e vigoroso, sobre as bandeiras, a Santa Cruz foi prejudicada num ano em que o descenso era de quatro escolas, tornando a disputa quase impossível para a escola da Zona Oeste. Era a hora, então, do desfile técnico, até porque algumas opções, como Cazuza, ou Abraham Medina, não tiveram a repercussão imaginada.

Negando seu percurso, assimilando a necessidade do “desfile moderno”, a Santa Cruz em 2003 fez um desfile correto. O samba-enredo escolhido, do veterano Fernando de Lima, sintetiza o dilema em que se encontra a escola. É um samba correto, técnico, e exatamente nos intervalos em que se esquece do tom formal e busca um diálogo, alcança seus melhores momentos. É exatamente isso: nesse desfile, a Santa Cruz, sua comunidade se exibiu com um grito entalado na garganta. Antes de desfilar bem, era preciso agora mostrar aos outros que se poderia desfilar bem, que se tinha condições de desfilar como qualquer escola do Grupo Especial. É com base nessa preocupação em mostrar sua “maturidade”, em demonstrar seu “profissionalismo”, ao invés de simplesmente ser madura, ao invés de simplesmente desfilar, que a Santa Cruz bloqueou seu próprio potencial, escondeu-se numa redoma de vidro. O enredo era muito ambicioso: era sobre o teatro desde a sua formação, passando pela Grécia antiga, pelo teatro ocidental e oriental, até chegar ao Brasil. Era um enredo de pompa e luxo. Concebido pela esposa do presidente, foi desenvolvido por um carnavalesco jovem, que pegou o enredo no meio do caminho, e optou por cores fortes, como o rosa e o roxo, descaracterizando qualquer possibilidade de harmonia visual ente os setores da escola. Preferiu-se o histrionismo, ao invés da simplicidade, ou da presença do verde-e-branco. Preferiu-se o tom ambicioso a um enredo afetuoso, ou ainda a um enredo sobre a magia e a ilusão. Não se percebeu que essencialmente era um enredo que não tinha como não ser baseado na emoção, com a presença de tantas personalidades consagradas do meio artístico brasileiro. Mas agora não poderia mais haver espaço para a espontaneidade, para o devaneio, para a emoção. Por isso, a Santa Cruz fez um desfile triste, porque, ao invés de aproveitar a oportunidade há tantos anos lutada pela escola para retornar ao grupo, preferiu tentar mostrar que era uma escola como as outras, ao invés de tentar ser ela própria. Seu destino foi o previsível: os jurados, que desconheciam a escola, que ignoravam tudo o que acabou de ser dito, tudo o que estava em jogo, se limitaram a dar notas exatamente contra todo o critério técnico que a escola havia tanto buscado.

Marcelo Ikeda
26/03/2003

Mocidade 2003

Os sambas-cartilha de Santana e Ricardo Simpatia

Depois dos enredos sobre a paz universal e cia. e da façanha de realizar um dos enredos mais impensáveis da história do Carnaval - a doação de órgãos - a Mocidade resolve fazer uma campanha contra os acidentes de trânsito, chegando inclusive ao descalabro de usar a figura de Ayrton Senna para mostrar ao povo como a alta velocidade provoca vítimas. Em prol do politicamente correto e das campanhas de utilidade pública, a Mocidade com estes dois enredos está para o que foi a Beija-Flor no início dos anos setenta, com seus enredos sobre o Mobral e o Brasil do ano 2000.

A síntese do discurso reacionário, burocrático e didático que busca a Mocidade está nos sambas de Santana e Ricardo Simpatia. Se em Villa Lobos, a dupla ainda consegue instantes de poesia, apesar de irregular, o novo discurso da escola parece ter se encaixado à perfeição no estilo dos compositores. Recheado de imperativos categóricos, permeado de acordes evangélicos que remetem a uma idéia de limite tênue entre vida e morte e de um sentido de missão/redenção, a dupla de compositores parece querer inaugurar uma nova linha - melódica e estilística - na safra de sambas-de-enredo atuais: o samba-cartilha. Torna-se assim pior que os referidos sambas da Beija-Flor, já que estes apenas descreviam as "glórias do Governo", enquanto os da dupla não apenas descrevem, mas sugerem que quem ouça passe a ter um certo tipo de padrão de comportamento. Se pensarmos que o Carnaval é por excelência a época da "inversão", da saudosa malandragem, da revisão dos padrões politicamente corretos, da critica aos costumes, o Carnaval da Mocidade pode ser considerado o "anti-Carnaval", e a verdade é que os sambas de Santana e Ricardo Simpatia são o hino perfeito para esse Carnaval possível: didáticos, burocráticos, reacionários.

Parque Curicica 2003

Parque Curicica 2003

Há sambas que se justificam por um único verso, ou ainda por uma única palavra. Esse é o caso do memorável samba do Parque Curicica no Carnaval 2003, quando a escola pela primeira vez pisou o chão da Marquês de Sapucaí. O enredo sobre o Mercadão de Madureira a princípio parece pouco promissor. Mas mais que puro poder de síntese, trata-se de recurso de incalculável apelo emocional.

Os quatro versos são esses:

“E de repente fogo! alguém gritou
O velho mercado ardeu
Madureira chorou ... chorou
E a alma da gente doeu ”

No meio da segunda parte do samba, os compositores atingiram a parte essencial do enredo: a retratação da tragédia do incêndio que destruiu o mercadão. Os compositores conseguiram exprimir todo o impacto da tragédia em quatro versos de enorme objetividade e impacto emocional. No primeiro verso, a surpresa ante ao inesperado (de repente), a reduzida importância das causas em proporção ao alcance das conseqüências, a dramaticidade da percepção do instante da tragédia, a original mescla do discurso direto e indireto. No segundo, a felicíssima expressão “ardeu”, o discreto uso do adjetivo “velho”, que insere todo um implícito recado sobre o papel do tempo e da decadência física. No terceiro, usando o bordão de um conhecido samba, a idéia do mercadão como símbolo de uma coletividade, expressão de todo um bairro (quem chorou foi Madureira...). No quarto, enfim, um verso irrecusável, a máxima da síntese entre a objetividade e o apelo emocional, entre o discurso metafórico e a expressão concreta: a alma doeu.

Mas na verdade a grande invenção deste samba de Curicica ainda está para ser assinalada, e se resume no emprego preciso de uma única palavra: é o segundo “chorou” no terceiro verso. Essas duas sílabas modificam completamente tudo o que se pode esperar de um samba-enredo. Trata-se de uma enorme contribuição, no sentido de como o samba-enredo pode recuperar um valor expressivo, de como pode ser possível materializar um sentimento. A conclusão dos compositores parece ser pela via negativa: repetir a palavra “chorou” significa que nada mais pode ser feito diante da tragédia, a não ser aceitar os fatos e sucumbir diante da tragicidade do destino. Nada mais resta a “Madureira” a não ser chorar, testemunhar e lamentar a perda de seu símbolo. O que fazer diante do terrível incêndio que destruiu o mercadão? Com isso, o samba acaba assumindo dimensões muito amplas, ao se debruçar sobre a finitude da vida e a impotência da condição humana para lidar com isso. Através da impossibilidade de expressar um sentimento, repetindo a palavra “chorou”, os compositores assumiram uma idéia de impotência e sua fragilidade, incorporando-as à própria estrutura do samba. Só então podemos calcular o impacto do quarto verso “e a alma da gente doeu”, como uma das maiores expressões de desnudamento da atual safra de samba-enredo.

Mais haveria a ser comentado sobre este samba, como, por exemplo, o belo início “É madrugada / o galo canta / lavrador se levanta / vai trabalhar”, que permite um contexto contemplativo ao inserir a importância da rotina no funcionamento diário do mercadão. Mas tudo se desvanece quando se compara aos antológicos quatro versos descritos. Com uma única palavra, os compositores de Curicica conseguiram retratar todo um sentimento de dor e de perda diante da tragicidade do destino. É mais que o suficiente para um samba.

Marcelo Ikeda
04/08/2003

sobre o Carnaval de 2003

Carnaval 2003

O Carnaval atual está chegando a uma espécie de encruzilhada. O Carnaval de 2003 foi um dos mais fracos dos últimos tempos, quiçá da história do Carnaval. Os sintomas são claros: as escolas parecem repetitivas, não animam nem os desfilantes nem os espectadores, tudo parece um pastiche de si mesmo. As causas e as possíveis soluções é que parecem nebulosas.

De concreto, parece o seguinte: as escolas de samba tornaram-se um espetáculo. Ou seja, são apresentações feitas para o deleite visual, para serem assistidas. A reação ideal do espectador é permanecer inerte, possivelmente boquiaberto com a “beleza” e a “graça” das fantasias, dos carros alegóricos e de itens como a comissão de frente, o mestre sala e a porta bandeira, etc. Outro ponto fundamental que modificou o Carnaval são os critérios de julgamento. O desfile técnico passa a ser o necessariamente frio, correto, ou meramente descritivo. A influência dos campeonatos da Imperatriz na década de 90 foi decisiva para os atuais rumos do Carnaval. Mesmo que nos dois últimos anos a escola tenha se esforçado ao máximo para NÃO ganhar o Carnaval, as demais escolas tentam assumir o posto vago deixado pela Imperatriz, para, pelo menos, retornar no sábado das campeãs. As escolas intermediárias, que poderiam buscar um carnaval mais inovador, ou tentam alcançar o “grupo das notáveis”, ou tentam se manter, aos trancos e barrancos, nessa posição, exatamente copiando o “estilo nobre” do grupo das notáveis. Por fim, há três ou quatro escolas que se esforçam para permanecer no grupo. Em suma, não existe possibilidade para o risco no Grupo Especial.

O estímulo à passividade do espectador, a predominância do tom descritivo escolhido pelos carnavalescos, e a imposição de um falso “tecnicismo” nos critérios de julgamento por parte da LIESA formam um tripé que levou o carnaval atual a uma encruzilhada. Talvez até uma crise, mas se o for, uma crise administrada. O Carnaval cada vez mais gera lucros, por isso, pela supremacia do econômico, passa-se uma idéia de que tudo vai bem. Mas quem acompanha o Carnaval cada vez mais se queixa das apresentações do Grupo Especial, cada vez mais confessa uma sensação de cansaço.

A crítica em 2002 foi a do patrocínio. Mesmo com enredos que não tratavam explicitamente de cidades ou de marcas (com a nítida exceção da Grande Rio), os enredos não se tornaram mais criativos, os sambas não se tornaram de melhor qualidade, a inércia do espectador permaneceu. Ou seja, a explicação para o marasmo é outra, de fonte bem mais complexa.

Unidos de Lucas 1987

Unidos de Lucas 1987

Enquanto o Tuiuti escolhe o samba para o enredo em homenagem a Vinicius de Moraes, sigamos o conselho do poetinha: “Recordar é viver”. A Unidos de Lucas ficou a um degrau de subir para o grupo principal apresentando em 1987 um enredo sobre o compositor. O samba de Lucas, escondido na última faixa do lado B do LP dos sambas-de-enredo de 1987, que incluía algumas escolas do especial, como Salgueiro, Ilha e Caprichosos, é uma pérola que deve ser mais conhecida. Sua leitura do enredo foi a de uma homenagem extremamente respeitosa, quase todo em tom menor, completamente absorto por um sentimento de saudade.

O início do samba ilustra, à perfeição, a estratégia dos compositores. O primeiro verso é um capítulo à parte, de belíssima melodia em tom menor, quase o transformando em um canto de lamento. Basta compará-lo ao primeiro verso do samba da Portela de 1969 (As Treze Naus), semelhante nas pausas e na letra (“Apesar de tantos séculos passados”). No “apesar” o samba da Portela vai ligeiramente subindo, seguindo os padrões tradicionais de melodia do samba-enredo. No de Lucas, o “através” é totalmente dominado por um tom menor, num murmúrio grave, completamente atípico, quase fantasmagórico.

Mas o deslumbrante da saudade – e da homenagem – é a possibilidade de reviver, de resgatar os momentos passados. Lentamente tentando se desvencilhar de seu lado de lamúria fúnebre, a segunda parte, após o segundo refrão, se concentra no retrato apaixonado e íntimo do poeta como observador do cotidiano boêmio do Rio de Janeiro. Ao citar seus quatro parceiros mais famosos, num esforço enumerativo que nunca perde o vigor melódico, o samba atinge suas notas mais altas. Em seguida, completa com dois versos de enorme poder de síntese, poesia e beleza: “O poetinha fez da vida / uma canção de amor sem fim”. Se o amor não é imortal, posto que é chama, como afirmou o poeta num de seus sonetos mais famosos (o Soneto da Fidelidade), os compositores ironicamente desejam contestar o mestre. Sua vida foi (é) “uma canção de amor sem fim”, sugerindo a perpetuidade de suas obras e de seu sentimento de vida mesmo após sua morte.

O terceiro refrão desponta então como natural continuidade dos versos anteriores, sintetizando em letra e melodia e essência do enredo, o papel da saudade, da memória, e da “vida após a morte”.

Mas não se pára por aí, e cada vez mais se percebe a extrema sensibilidade dos compositores. Ainda resta um discreto epílogo, comentário ambíguo, misto de uma profunda dor e resignação com um sentimento de esperança: “E entretanto é preciso cantar”. O samba claramente se apresenta como um canto de lamento (“entretanto”), que nos brinda com um sutil comentário sobre o papel da arte, da canção e – por que não? – do Carnaval no cotidiano de um povo.

Marcelo Ikeda
17/09/2003.


Unidos de Lucas 1987

Através de suas obras geniais
Seu nome foi consagrado na galeria dos imortais
É carnaval, é alegria
Lucas faz com euforia
Um tributo a Vinicius de Moraes
Oh! Menestrel
Diplomata, jornalista, escritor
Compositor de rara inspiração

[Peças teatrais, temas colossais
Como Orfeu da Conceição]

Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça
Quanta imaginação

[A beleza, a poesia
Cantada em forma de canção]

Sensível para o clássico e o popular
O piano, o bar, a esquina
E o papo com as meninas a beira-mar
E com Toquinho, Carlos Lira
Baden Powell e Tom Jobim
O poetinha fez da vida
Uma canção de amor sem fim

[Oh mestre !
Como recordar é viver
E por falar em saudade
Onde andará você]

E entretanto é preciso cantar
Para alegrar a cidade
Nesta festa popular

Grupo B 2004 - esboço

Grupo B

O simples fato de o CD do Grupo B 2004 existir já é um feito a ser comemorado, ainda mais a partir da lacuna de 2003, em que o CD não foi lançado. A “festa” só não é completa, porque duas escolas estão fora do CD: Renascer e Villa Rica (sendo que não me foi possível ter acesso ao samba desta última)



Vizinha Faladeira

Se os sambas de invenção pós anos 90 propunham uma ampliação das convenções rítmicas dos sambas dos anos 80, sempre persistiu uma certa saudade, uma nostalgia de um período de notável popularização de tais convenções. Neste sentido, este samba da Vizinha Faladeira para o Carnaval de 2004 talvez seja uma das mais notáveis tentativas de resgate a uma visão de samba-enredo. Para tanto, o fator primordial é o tom narrativo do enredo, que descreve a conhecida e popular história da bela adormecida – entrando em diálogo com o solitário título da escola no longínquo carnaval de 1934, sobre a Branca de Neve e os sete anões. Esse diálogo do enredo (que só foi possível devido ao mote das “reedições”, que acabou encontrando sua ressonância particular também no Grupo B) portanto ganhou uma analogia com o samba-enredo, numa analogia entre o musical e o visual que se encontra seu encaixe mais adequado numa estrutura de Grupo B, por excelência, distante da “espetacularização” dos desfiles do Grupo Especial.

Mas se é o tom popular e especialmente o aspecto narrativo do enredo que permitiram aos compositores construir essa ponte com uma visão de anos oitenta (vejam o formato típico do refrão do meio), o samba é maior que simples revisitação nostálgica. Na sua simplicidade e objetividade de estrutura, surge uma leitura do conto infantil com inegável brilho e destreza. A sabedoria dos autores foi enxergar o conto como uma luta entre o bem o mal, preenchendo toda a narrativa com um tom místico ameno mas bastante atento aos detalhes, sem nenhum termo supérfluo (note a predominância dos substantivos em relação aos adjetivos). Versos com enorme poder de síntese e poesia (“até que o príncipe guerreiro / na floresta fez da lenda uma missão”, “do beijo nobre renasce a vida”) dão o tom de bom gosto e discreto refinamento que dominam todo o samba.

Mas por fim o samba se revela com uma luz especial no admirável refrão final. Após a narrativa épica da bruxa versus a fada, ou do príncipe versus o dragão, ou, em última instância, do bem versus o mal, as trevas, o sono sucumbem ante a luz, o amor. O refrão final, num recurso típico de uma ópera, evoca essa glorificação do bem ante o mal, com um símbolo de paz. E como, em termos narrativos, isso poderia ser expresso? Ora, através do nascimento de uma criança, dando continuidade ao reino, à paz, à vida. É somente isto o que está em jogo nesta fábula moral.

Coluna - num 3

Coluna 3 – os sambas do Grupo de Acesso A

Se a safra do Grupo Especial foi uma das menos felizes dos últimos tempos, o mesmo não pode ser dito em relação ao Grupo de Acesso A. Ao contrário, em 2004 veremos uma das safras mais consistentes do Grupo. Ainda, teremos o privilégio de acompanhar três sambas bem acima da média, inclusive do Grupo Especial: União de Jacarepaguá, Vila Isabel e Tuiuti. O samba de Jacarepaguá, que será visto de forma mais detalhada a seguir, é o grande samba de 2004, entre todos os grupos, uma verdadeira obra-prima, comprovando que o gênero samba-enredo está longe de parecer esgotado. O samba simplesmente consegue praticamente o impossível: aliar uma letra longa e descritiva com uma melodia repleta de meandros e trechos de enorme inventividade, ou ainda as exigências de um samba-enredo atual com um de linhagem clássica. Já o samba da Vila Isabel é absolutamente memorável por outro aspecto, estando quase na contramão do samba de Jacarepaguá. Aqui, o que está em jogo é, a partir de uma visão de samba-enredo que tem como primazia o competitivo, conseguir extrair melodia e poesia. A perfeição com que o faz nos comprova que é preciso ver além, que não se pode simplesmente rotular o samba competitivo como um samba menor. Já o samba da Tuiuti explora os limites entre o samba-enredo e os demais tipos de samba, trazendo para o formato do samba-enredo um jeito de “samba de raiz” ou especialmente de “samba-exaltação”, até explodir num refrão final absolutamente desconcertante.

Além destes três sambas memoráveis, outros dois estão acima da média, comprovando a boa safra do Grupo A: Santa Cruz e União da Ilha. A Santa Cruz repete a parceria de Doutor e Fernando de Lima em mais um samba típico da parceria, com contornos melódicos praticamente idênticos ao samba de 2003, mas que ao mesmo tempo comprova a eficiência e a coerência do “samba de laboratório” do grupo. Já o samba da União da Ilha é outro e deve ser visto do mesmo modo que o da São Clemente: ainda que não seja um “samba de invenção”, é um samba absolutamente necessário por resgatar uma identidade musical e carnavalesca própria da escola.

Ainda, três sambas não deixam a dever a outros do Especial: Rocinha, Alegria e Leão. Consistente, o discreto samba da Rocinha tem passagens de letra e melodia de suave beleza, e merece ser observado mais atentamente, porque foge tanto do estilo oba-oba quanto de um estilo abertamente mais refinado. O samba da Alegria é o outro lado da moeda: aberto, alegre, delirante, carnavalesco, é um samba que não tem o menor pudor em romper sua própria estrutura para promover um mergulho desigual e fascinante na obra de Dorival Caymmi. O samba do Leão tem seus méritos, seja num longo refrão final ou na sinuosa melodia da primeira parte, e tem os seus momentos.

Por fim, os outros quatro. A Estácio mais uma vez opta por um samba de embalo irregular, apesar de ter um ou outro momento. A Cubango se esforça ao máximo para evitar o samba-trash com um enredo sobre os shopping centers, mas cujo resultado dificilmente poderia ser positivo. A Inocentes aposta na marchinha fácil e no samba descartável. E a Lins desperdiça a homenagem à Mangueira para compor um samba absolutamente burocrático e descritivo, que ignora que uma visão de poesia deve se compor de uma integração entre letra e poesia, e nunca da supremacia de uma sobre a outra.

Marcelo Ikeda.
06/02/2004.


Jacarepaguá

Todo o samba-enredo contemporâneo se debruça sobre um dilema. Na questão da letra, de um lado, uma necessidade de ser descritivo a ponto de abordar em sua exposição a integralidade do enredo e a disposição (em alas e alegorias) da escola na Avenida; de outro, de ser sintético e com expressões fáceis para tornar o samba de mais rápida assimilação. Na melodia, por um lado ser um samba de apelo cada vez mais popular, por outro, ser uma samba com mais nuances melódicas e repleto de meias-pausas e variações rítmicas que o samba da década de 80, que seguia muito mais à risca suas convenções particulares (tanto rítmicas quanto melódicas).

Este samba da União de Jacarepaguá é uma verdadeira jóia por vários aspectos, entre eles o de ser uma reflexão profunda sobre esse hiato. Seu complexo projeto é na verdade o de reunir as duas tendências, resgatando um samba-enredo de origem mais clássica (até mesmo o samba dos anos 60), mas acrescentando-lhe uma roupagem contemporânea, seja no sentido de presentificar suas formas seja como meio de compatibilização às necessidades atuais do desfile e da disputa de samba-enredo dentro da escola. Temos então um samba de 24 longos versos, além dos oito que compõem os refrões, que descreve perfeitamente o enredo de forma clara mesmo para quem está sendo apresentado a este pela primeira vez, integralmente tomado por expressões simples e objetivas, com dois refrões fortes (especialmente o do meio) típicos dos sambas atuais. Por isso, na verdade é um samba popular, que só não se revela ainda mais devido à sua extensão, mas que não busca as quebras rítmicas e melódicas de uma vertente do samba-enredo atual (Gusttavo, Lequinho, Wilsinho Paz, etc.). Ou seja, não é propriamente um samba de invenção, no sentido de buscar novas formas de expressão para o gênero, mas é um samba de continuidade, de diálogo com uma cadência rítmica mais típica dos anos 80 e de uma estrutura de letra dos anos 60. Fato este que está longe de desmerecê-lo, pois sua vocação é exatamente esta: o de mostrar que não está necessariamente dissociado do apelo popular um bom gosto melódico e um requinte de composição. Por outro lado, quando dizemos “popular”, pensamos na comunidade, enfim nas pessoas que tem uma certa intimidade com o gênero, e não nos “turistas” que eventualmente compõem o público da Sapucaí ou que desfilam nas escolas. Ou seja, popular é o público que freqüenta os desfiles do Grupo de Acesso, tipicamente diferente do que atualmente assiste ao Grupo Especial.

Mas se não é um “samba de invenção” e se demonstra uma vocação mais popular, isto não implica em absoluto que o samba seja de pouca criatividade. Ao contrário, este samba de Jacarepaguá se revela como um verdadeiro assombro em termos de sua força arquitetônica, ao construir em cada verso e cada nota, sem nenhuma necessidade de precipitação que o leve para um desfecho sorrateiro, uma leitura do enredo de supremo bom-gosto e requinte: não há uma única palavra ou acorde que não esteja perfeitamente encaixado no samba ou que destoe de um conjunto que suplanta sua simples expressão individual.

O ápice dessa tendência está na extraordinária segunda parte do samba, que – sem nenhum exagero – passa a ser peça obrigatória em qualquer antologia de samba-enredo. Chega-se quase ao limite das potencialidades de um samba atual: está para os nossos tempos assim como o que a “Aquarela Brasileira” representou para os seus. Nos primeiros cinco versos apresenta-se a diversidade das belezas naturais do Rio de Janeiro, com destaque para a singeleza das variações melódicas dos dois primeiros versos (observe, por exemplo, como, no primeiro verso, há uma gradação do agudo ao grave de extrema maestria e habilidade de composição, e como no segundo, se foge, tanto em termos rítmicos quanto melódicos, da mera repetição do verso anterior). Em seguida, o samba passa a ser narrado em primeira pessoa, com o uso reiterativo de “sou” ou “eu sou”, mas nunca como mero espelho de pobreza vocabular, e sim como recurso de expressão, sendo que a melodia nitidamente aponta para a consciência da repetição como efeito expressivo. Os três primeiros versos, de rara beleza melódica, poderiam apontar para um crescendo muito abrupto, tornando, nesta progressão, o samba agudo demais em seus versos finais (vejam por exemplo o caso do samba da Mangueira de 1992, sobre Tom Jobim, em que o crescendo é linear). Mas os autores no verso seguinte elaboram um recurso de extrema sofisticação, trazendo de novo o samba para o mais grave, para em seguida, dois versos adiante, novamente retornar aos acordes mais agudos, revelando a enorme variação melódica da obra e a estratégia dos compositores.

Apostando num tipo de composição que caminha na contramão do “trash enlatado” ou do fast food que contamina os desfiles atuais, revelando a destacada ousadia e coragem tanto do Presidente da escola quanto de sua ala dos compositores, a União de Jacarepaguá, em seu terceiro ano consecutivo no Grupo A, aposta num mesmo estilo refinado de samba-enredo, em consonância com os dois anos anteriores, consolidando uma identidade musical para a agremiação. Este samba, da mesma parceria do também belo samba de 2002 (sobre o sonho de voar), potencializa vários dos avanços do verdadeiro tour de force estilístico que era o samba de 2003, de outros autores, confirmando um trajeto de continuidade e de influência mútua que revela que, ao que tudo indica, os deuses da inspiração sopram para as bandas de Jacarepaguá.

Marcelo Ikeda
23/01/2004.

Vila Isabel

A disputa para a escolha do samba-enredo na Vila Isabel colocou frente a frente um dilema que atinge não só a escola, mas o desfile das escolas de samba em geral. De um lado, o samba de Jorge Tropical, que tentava o bicampeonato; de outro, o samba de Leonel, André Diniz e parceiros. Ou seja, de um lado, um samba de vertente clássica, com uma melodia original mais próxima dos sambas antigos da escola; de outro, um samba mais voltado para o lado competitivo e para as necessidades do desfile de hoje. Dado o decepcionante resultado do ano passado, em que a escola não conseguiu retornar ao Grupo Especial com o samba de Jorge Tropical, seria natural que a outra vertente ganhasse força.

Fruto de uma parceria que já fez o seu nome no samba-enredo contemporâneo, o samba da Vila Isabel deve ser analisado junto com o samba do Salgueiro, composto pela mesma parceria. Mas enquanto tudo no samba do Salgueiro aponta para uma impossibilidade, ou para uma resignação, neste samba da Vila Isabel, tudo se transforma, todo o samba é envolto por uma necessidade do desejo. Ainda, o que está em jogo é, acima de tudo, um samba que prima pelo competitivo. Mas o que este samba comprova – e esta é sua grande lição – é que não é isto o que o torna menor, é poder aliar uma visão competitiva a um lado de poesia e melodia.

O enredo, sobre a cidade de Paraty, a princípio não parece nada inspirador. Mas ao invés da descrição meramente didática, os autores incorporaram na estrutura do samba uma idéia de caminho e percurso com diversas analogias à sua própria posição como compositores. Neste caminho em direção às riquezas e às tradições de Paraty, não resta uma saudade, ou uma revisitação nostálgica. O que se busca é uma analogia com um olhar de hoje, como se todo o frescor do caminho se mantivesse hoje da mesma forma que antes. O desafio em relação à proposta da parceria em termos de samba-enredo fica claro no seguinte verso:

“Que preserva tradições
E se alinha às transformações”

Passado e presente se fundem, numa idéia circular, já traduzida na cabeça do samba (‘Chegou minha Vila a girar”), e todo o samba se inspira de uma forma comovente numa idéia de liberdade e esperança (na felicíssima expressão “veio azul e branco”). E é claro, o que torna mais comovente é que essa viagem ao passado e às riquezas de Paraty se revela um espelho da própria história da Vila Isabel. E ao invés de se renderem ao fácil discurso de nostalgia, a lição dos compositores é que “meu passado é hoje”, e que esse legado é mais que presente, mas sem nunca se esquecer dos desafios e das transformações próprios da vida.

Marcelo Ikeda.
15/02/2004.


Tuiuti

Não é preciso muito para tornar um samba-enredo marcante: é preciso antes de tudo um olhar sobre o enredo que se traduza através de uma estrutura que articule letra e melodia. O belo samba da Tuiuti é exatamente isso: é um samba baseado numa estrutura sem grandes variações melódicas, tornando-o até certo ponto repetitivo, especialmente na transição da primeira parte para o refrão do meio. Mas seu aspecto de invenção é exatamente esse: através de um tom menor ambíguo que perpassa três quartos do samba, consegue romper o formato tradicional dos sambas-enredo atuais, fugindo das convenções para buscar sua própria expressão particular.

E essa expressão busca sua originalidade através de um implícito questionamento do que é específico do samba-enredo, tornando-se mais próximo – por uma noção de ritmo, de contornos melódicos, e de letra – de um samba-exaltação. Em termos de letra, este samba da Tuiuti ainda reluta contra o samba-enredo descritivo, para – como seu primeiro verso apresenta de forma muito clara – promover um “mergulho” poético e lúdico no imaginário do poetinha, ao invés de simplesmente listar suas principais obras. Vejam como a primeira parte foge do meramente descritivo para incorporar um sentido poético:

“Venha mergulhar
Num lindo mar de fantasias
Meu canto está no ar
Com um leve toque de magia
Vejo no amanhecer
Versos e canções de amor
E uma doce aquarela
De um paraíso multicor”

Mas tudo ainda está para ser desvelado de forma desconcertante e inesperada, no memorável refrão final, que explode como um grito de desabafo. Ao contrário de todo o tom monocórdico e sombrio do samba, o refrão final atinge as notas mais agudas, integrando o ato de desfilar com a proposta do enredo. Com isso, a homenagem se expressa em toda a sua atualidade, como lição de vida (um tríptico: ato de lembrar – ato de desfilar – ato de viver). O longo refrão final quebra todos os paradigmas da fórmula do “samba-empolgação”, o que só serve para confirmar a inutilidade das fórmulas: é sem sombras de dúvida o refrão final mais marcante do ano de 2004.

Burilado com pequenas mas significativas correções (realizadas por um dos compositores que fora derrotado na final, um dos mais raros atos de generosidade em termos de uma disputa de samba-enredo), este samba da Tuiuti, cujo desempenho deve ser melhor avaliado após o desfile da escola na Avenida, é uma das grandes provas que o gênero do samba-enredo pode se renovar caso haja a coragem de também olhar para o antigo e para suas raízes.

Marcelo Ikeda.
15/02/2004.

Santa Cruz

O samba-enredo contemporâneo possui várias vertentes. É preciso olhar com atenção cada uma delas, analisando o viés de suas limitações, mas também respeitando suas particularidades, refletindo até que ponto esse viés espelha um olhar sobre o gênero e sobre o próprio desfile das escolas de samba. Este é o desafio quando se ouve mais um samba de Fernando de Lima, o típico “samba de laboratório”. Este samba da Santa Cruz é praticamente idêntico em termos musicais e de estrutura ao samba da Santa Cruz de 2001 e de 2002, todos da mesma parceria.

Refrão Final 2003:
“É Santa Cruz pode aplaudir, alto astral
O nosso show hoje é aqui, mundial
Você faz esta festa, chegou a hora é esta,
Carnaval!”

Refrão Final 2004:
‘Pintei de amor meu coração
Deixei entrar a sedução
Brindo esta terra que a história traduz
Santa Cruz!”

(Compare também com a parte de 2003)
“Estrelas de Luz
O artista traduz emoção”


Como típico samba de Fernando de Lima, não há espaço para a invenção, para o esgar, ou para a mera intuição: trata-se de buscar os caminhos de um samba essencialmente competitivo, um “samba de laboratório”. Mas ainda assim, e esta é a sutileza do grupo de compositores, toda a rigidez de sua estrutura reflete apenas sua forma particular de fazer poesia. À sua maneira, o samba busca um diálogo com um processo poético, um inventário preciso de paixão e fantasia. De novo, a escolha das palavras se torna marcante, como nos versos “jóia que o amor poliu” ou “mergulhei meus sonhos em tua baía”. Mas talvez os versos que melhor definam o estilo dos compositores sejam “Abri as comportas das recordações / E desaguei as emoções”, em que toda a rigidez do concreto e da pesada estrutura física da represa se mistura a uma idéia intangível de memória, recordação, fantasia e emoção. É o que está em jogo por trás de todo o concreto da estrutura de “samba de laboratório” dos compositores.


Marcelo Ikeda.
16/02/2004.

Alegria

Se nem tudo que reluz é ouro, nem todo samba-enredo prima pelos contornos técnicos, pela perfeição do acabamento. Ao contrário, o típico samba-enredo, especialmente nos anos 80, era o que mantinha uma comunicação com o público, o que refletia de forma intuitiva um certo inconsciente coletivo, uma tradição coletiva.

O samba da Alegria da Zona Sul reflete isso, todo um desejo de um Carnaval como ato de despojamento e de viver. Nessa ingenuidade reside sua força intuitiva. Os autores viram no enredo em homenagem a Dorival Caymmi uma oportunidade de promover um mergulho nas tradições do Rio de Janeiro e da Bahia. Delirante, visionário, o enredo coloca as duas heranças culturais num verdadeiro caldeirão de influências mútuas, sem se preocupar em localizar as diferenças. Tudo então passa a fazer parte de um grande Brasil, de um autêntico Carnaval, e é nessa intuitiva generosidade que o samba ganha sua força particular.

A primeira parte traduz todo o espírito do samba de forma bastante intuitiva e inspirada. Os quatro primeiros versos sinalizam o teor místico do samba:

“O céu da Bahia está em festa
Dança ioiô, canta sinhá
Hoje os atabaques anunciam
Caymmi vem nos braços de Iemanjá”

Cheio de um ingênuo e simples misticismo que tem inúmeros paralelos com a própria obra do compositor, a abertura do samba promove um encontro entre céu, terra e mar para a vinda de Caymmi. O samba ainda faz um verso de incrível intimidade e sutileza (“dança ioiô, canta sinhá”), conseguindo, de forma absolutamente simples, retratar todo um espírito de festa e de introdução ao espírito da obra do compositor.

Nos outros quatro versos, o samba pontua a questão do contato cultural, da ponte entre a Bahia e o Rio, ponto-chave do samba, de forma absolutamente clara e sucinta.

“No Ita naveguei
e vim no Rio morar
Bateu forte o coração
Copacabana é minha paixão”


Mas tudo se desvela na segunda parte, em que, com grande energia, o samba desconstrói toda sua possibilidade de unidade de estrutura para promover um mergulho desigual e fascinante nesse universo. Rompendo qualquer possibilidade de uma idéia de percurso, na segunda parte, é como se o compositor já estivesse completamente integrado a conviver entre os dois universos. O samba então submerge, de forma delirante, nessa confluência de culturas e acontecimentos. Como o próprio samba diz, um verso sintetiza, na melodia e na letra, sua força intuitiva: “Caymmi é alegria” (ou seja, “alegria” tanto como enredo da escola quanto como explosão de um desejo). A Alegria então dá sua contribuição no sentido de resgatar um samba-enredo de empolgação que preserva sua força intuitiva e seu desejo por um Carnaval de mais vibração que de técnica.

Marcelo Ikeda.
15/02/2004.

Coluna - num 2

Coluna número dois – a safra do Grupo Especial de 2004: os sambas não-reeditados


Conforme “prometido” na coluna anterior, nesta iremos nos debruçar mais a fundo sobre os sambas das dez escolas que optaram por enredos originais, isto é, as não-reedições. Seguiremos a ordem do CD.


1) Beija-Flor

A Beija-Flor comprova sua importância em termos musicais no Carnaval atual com o melhor samba entre as não-reedições. E isto porque havia ainda na equilibrada disputa na Beija-Flor pelo menos mais dois sambas de mesmo (senão de melhor) nível que o escolhido ( o de Aloísio Villar e parceiros, e o de Wilsinho Paz e parceiros). No impasse interno que se seguiu após a suposta preferência de Laíla pelo samba de Serginho Sumaré, ninguém menos que Neguinho da Beija-Flor acabou sendo fundamental para a virada na reta final, e a vitória do samba de Cláudio Russo e parceiros.

Desde a entrada da Comissão de Carnaval, e o campeonato no desfile de 1998, a Beija-Flor promoveu uma pequena revolução no Carnaval Carioca, tanto em termos visuais quanto musicais. Com isso, a Beija-Flor alcança uma identidade musical, baseada em sambas de andamento mais cadenciado e melodias com contornos mais trabalhados. Neste samba sobre a Amazônia, não é diferente, e a única passagem que soa abaixo das demais é o refrão final, com uma mensagem educativa que beira o didático (“Se Deus me deu, vou preservar / Meus filhos vão se orgulhar”).

O grande achado deste samba é sua distribuição nos versos a partir de sílabas tônicas com diferentes aberturas vocais. Todos os versos são entrecortados por sílabas fortes que são ora abertas (<á>, <é>, <ó>) ora fechadas (<ã>, <ê>, <ô>, <í>, <ú>), provocando uma alternância extremamente favorável à melodia. O ponto típico desta estratégia está no refrão do meio. Abaixo podemos ver a estratégia de rima dos compositores, equilibrada com sílabas tônicas de outras aberturas (usa-se do <á> até o <ú>). A metrificação também é perfeita, sendo na verdade um verso de cinco seguido de um de doze, duas vezes (assinalado por / )

"Eh! <ê> Manôa <ô> /
Minha canoa <ô> vai cruzar <á> o rio-mar <á> /
Verde <ê> paraíso <í> / é onde Iara <á> me seduz <ú>
com seu cantar <á>

Esta observação pode ser feita para quase todo o samba, como por exemplo, o final da primeira parte:

Brilhou <ô> o Eldorado, <á>
No co <ô> ração da mata <á> as guerreiras <ê>
Bele <ê> zas naturais, <á> rique <ê> zas minerais <á>
O rei <ê> no de Tupã <ã> ergue a bandeira <ê>

Outros achados em termos de letra merecem ser destacados, como “A lágrima que o trovão derramou”, ou especialmente em “água que lava minh´alma”, em que a melodia atinge seus acordes mais líricos, apenas para no verso seguinte retornar a estrutura com vogais mais fechadas (“ao matar a sede <ê> da população <ã>”), como recurso típico deste samba.

É essa articulação entre letra e melodia que torna este samba da Beija-Flor o mais bem sucedido dos sambas não-reeditados.


2) Mangueira


Equilíbrio e intimismo: Cadu e sua “estética do artesanato”

“Eu não vivo no passado; é o passado que vive em mim”
Paulinho da Viola

Após três anos em que foram derrotados na final, Cadu e seus parceiros finalmente venceram a disputa na Mangueira com relativa facilidade (a decisão na final foi quase unânime) em sua quarta final consecutiva. Este samba é uma espécie de síntese da visão dos compositores sobre o gênero, e ao mesmo tempo consolida sua progressiva evolução, sendo o samba mais trabalhado da parceria.

Para Cadu, não se trata de fazer um samba de invenção: sua proposta é trabalhar de forma incansável e minuciosa dentro dos estreitos limites do gênero. É um samba mais de transpiração que de inspiração, o que de forma alguma significa um desmérito: é nítida a preocupação dos autores em buscar a palavra mais exata, o acorde mais perfeito, o tom exato. Dessa forma, a grande chave que sintetiza a impressão causada pelo samba é o equilíbrio. É essa obsessão pelo acabamento que cristaliza a “estética do artesanato” dos compositores.

Mas quem pensa, a partir dessas linhas, que se trata de mero acabamento mecanicista está muito enganado. Por trás de sua aparente estrutura que beira o convencional, desvela-se como nítida expressão pessoal, e daí resume a incrível sutileza desse samba. (E daí lembramos os recursos de uma arte que luta intensamente para esconder seus supostos vestígios de expressão pessoal, mas que acaba paradoxalmente por revelar-se - ou seja, a estética classicista, desde um filme de Howard Hawks até um romance de Tolstoi...) .

Sua expressão autoral está na leitura do enredo pelos autores como uma inevitável expressão de saudade e melancolia. Nesse enfoque, tudo se encaixou plenamente ao estilo dos autores de preferirem os meios-tons e a chave em tom menor. O início do samba, numa espécie de “flashback”, já evidencia a estratégia dos autores: é a partir da herança partida do hoje que se olham as maravilhas do ontem. Nesse passeio íntimo pelas riquezas de Minas, seu olhar pelo passado nunca é meramente saudosista e antigo (apesar de claramente tender a isto), mas se conjuga sutilmente com a necessidade do presente. Vejamos a estratégia dos autores em seu refrão do meio:

“Por belos recantos, andei
Das suas águas provei
De mansinho, eu peço passagem
A Mangueira vai seguir viagem”

Os dois primeiros versos tratam das belezas do passado; o terceiro, reforça o tom de intimidade e sutileza que já existia nos dois primeiros versos. Mas o quarto é o mais elucidativo: mostra que mais que simples viagem ao passado, é um pequeno estudo sobre o papel do tempo. Seguindo a viagem pelos recantos, os autores mostram que a vida precisa continuar, que não se pode viver eternamente no passado, que o trem precisa seguir até o seu destino final. No fundo não deixa de ser triste, porque revela que é impossível permanecer lá para sempre, ou seja, não deixa de ser um olhar humilde sobre a fugacidade da vida.

Todo o samba se estrutura na idéia do percurso e na problematização da revisitação do passado. A primeira estrofe apresenta a questão de forma bastante sugestiva (“A estrada do sonho” / “Real desejo de poder e ambição”). Com “a estrada do sonho”, os autores resumem toda a idéia de percurso que caracteriza o samba, além da visão do passado como refúgio idílico impossível. Mas no verso seguinte, o “real desejo” traz de volta a importância da realidade (e a estrada é conhecida como “estrada real”...)

Por fim, em duas partes o samba coroa a fusão de presente e passado e sua estrutura do percurso com uma idéia de destino. A primeira, mais descritiva, é em “eu chego ao Rio com certeza”. Mas a segunda é mais poética, uma das chaves de elucidação do discurso dos autores: “As trilhas bordadas em ouro / levaram tesouros a caminho do mar”. A ambigüidade dos versos revela a sutileza desse samba: por um lado, um recurso negativo, já que a chegada ao mar representa o escoamento das riquezas para fora do país, uma perda de identidade. Por outro, positivo, já que o percurso e a viagem acabaram sendo bem-sucedidos. O mar surge, então, com inevitável força, como elemento simbólico, valorizado pela melodia, que ganha contornos mais líricos. É em direção a esse mar, como síntese entre o exílio e o encontro, que segue todo o percurso do samba por um rastro de passado perdido.


3) Grande Rio

Bicampeões, o samba de Mingau e cia. para 2004 não possui o mesmo vigor melódico que o samba de 2003. A tentativa a princípio parece a mesma: apresentar à Grande Rio um samba com uma roupagem melódica mais requintada, repleto de meias-pausas e variações melódicas para o agudo que beneficiem o estilo de Wander Pires. Mas desta vez, o enredo dificultou, e o tom acabou beirando o didático e o convencional. É certo que pelo menos a Grande Rio não virá para a Avenida com um samba trash, cheio de tiradas ambíguas e tendendo para o apelativo, seja em termos de letra quanto em melodia, e nessa escolha se ressalte o perfil criado pelos compositores, que tentam criar um relativo bom gosto. Mas se isso pode parecer muito em termos do que estava em jogo (isto é, do que o samba poderia acabar sendo) acaba sendo muito pouco em termos do que realmente é. No duro no duro acaba sendo um samba sofrível, especialmente em termos de letra, e com diversos problemas de acabamento, cheio de versos incompletos ou com sílabas frouxas (“quero ter pra ver / o milagre da vida acontecer”, “faz meu sonho real”, “fique sabendo”, “meu bem, lições de amor”, ...)


4) Imperatriz

Após o desastroso samba de 2003, a Imperatriz retorna ao seu estilo tradicional de samba: uma samba leve, de versos curtos, repleto de meias-pausas, com uma melodia fácil mas requintada, extremamente sintética em termos de leitura do enredo. Os compositores foram muito felizes em traduzir um enredo de leitura complexa de forma agradável e objetiva. Samba discreto, sem nenhum trecho com uma melodia de acordes mais agudos (nem mesmo nos refrões, e talvez especialmente neles...), revela seu refinamento e seu estilo cadenciado especialmente na segunda parte. Nela, os quatro primeiros versos introduzem de forma lírica a participação de Cabo Frio no enredo, resolvendo a dificuldade técnica da introdução de “Vespúcio” no samba. Em seguida, uma ligeira quebra, típica dos sambas do Guga, em “depois partiu com nosso pau-brasil”, para logo depois retornar ao estilo mais cadenciado próprio da escola.

Ao final, um recurso quase atípico dos sambas atuais: uma espécie de epílogo, com quatro versos antes do refrão principal, que insere um clima de contemplação passiva e de deslumbramento extremamente sugestivos.

Equilibrado e lírico, este samba da Imperatriz acaba se destacando por sua discreta poesia e sua leitura fácil e sintética dos sempre complicados enredos de Rosa Magalhães.


5) Mocidade


Os sambas-cartilha de Santana e Ricardo Simpatia

Depois dos enredos sobre a paz universal e cia. e da façanha de realizar um dos enredos mais impensáveis da história do Carnaval – a doação de órgãos – a Mocidade resolve fazer uma campanha contra os acidentes de trânsito, chegando inclusive ao descalabro de usar a figura de Ayrton Senna para mostrar ao povo como a alta velocidade provoca vítimas. Em prol do politicamente correto e das campanhas de utilidade pública, a Mocidade com estes dois enredos está para o que foi a Beija-Flor no início dos anos setenta, com seus enredos sobre o Mobral e o Brasil do ano 2000.

A síntese do discurso reacionário, burocrático e didático que busca a Mocidade está nos sambas de Santana e Ricardo Simpatia. Se em Villa Lobos, a dupla ainda consegue instantes de poesia, apesar de irregular, o novo discurso da escola parece ter se encaixado à perfeição no estilo dos compositores. Recheado de imperativos categóricos, permeado de acordes evangélicos que remetem a uma idéia de limite tênue entre vida e morte e de um sentido de missão/redenção, a dupla de compositores parece querer inaugurar uma nova linha – melódica e estilística – na safra de sambas-de-enredo atuais: o samba-cartilha. Torna-se assim pior que os referidos sambas da Beija-Flor, já que estes apenas descreviam as "glórias do Governo", enquanto os da dupla não apenas descrevem, mas sugerem que quem ouça passe a ter um certo tipo de padrão de comportamento. Se pensarmos que o Carnaval é por excelência a época da "inversão", da saudosa malandragem, da revisão dos padrões politicamente corretos, da critica aos costumes, o Carnaval da Mocidade pode ser considerado o "anti-Carnaval", e a verdade é que os sambas de Santana e Ricardo Simpatia são o hino perfeito para esse Carnaval possível: didáticos, burocráticos, reacionários.


7) Salgueiro

O samba do Salgueiro é – por incrível que pareça – o mais complexo samba da safra 2004, pois para ouvi-lo corretamente, é preciso estar bastante atento não só aos últimos desfiles da escola, mas conhecer a fundo a trajetória do grupo de seus compositores e de seus “arredores”.

Cada verso e cada acorde deste samba estão envoltos em um sinal de perplexidade, ou melhor, em uma redoma de impossibilidade. Seus compositores são de um grupo dos mais talentosos do samba-enredo atual (e não é à toa que chegam ao tricampeonato - aliás inédito - numa escola do porte de um Salgueiro). No entanto, aqui, não se trata de talento nato (lembramos de Gusttavo e cia. ), não se trata de inspiração. Ao contrário, trata-se de negar a qualquer custo qualquer vestígio de uma aptidão natural, qualquer rastro de espontaneidade. O que se busca é exatamente um samba de laboratório, o que se quer é a “fórmula do samba de embalo” perfeito para o desfile oba-oba do Salgueiro, o que se deseja é aperfeiçoar o processo logístico da apresentação na quadra e da eliminatória dentro do Salgueiro. Seu produto é a negação do samba-enredo nos termos em que dizia Monarco (“o samba não é do morro nem da cidade; samba é tudo o que vem do coração”) para a implementação do supra-sumo do samba competitivo, do samba de resultados.

Mas quando analisamos a fundo este samba do Salgueiro – e este samba em particular mais que os dois anteriores –, o que só foi possível graças ao andamento lento da gravação do CD, percebemos que toda essa reação é quase uma atitude de criança que, acuada ao brigar com seus amigos de rua, acaba encontrando os estudos como único refúgio. Percebemos que todo o samba é um canto de lamento, que em todos os seus acordes ressoa um desejo profundo de que as coisas fossem diferentes, sendo uma das mais contundentes reflexões sobre o atual estágio dos desfiles das escolas de samba. E pensamos no fato de que os compositores vieram da Vila Isabel, escola de magníficos sambas que sucumbiu, entre muitas outras coisas, diante da recusa em apresentar um Carnaval de resultados; lembramos que o líder deste grupo de compositores (ainda que prefira não assinar o samba) é um enorme talento da “jovem guarda” que assinou sambas históricos da recente safra da Vila.

E é quando todas as intenções deste samba começam a se desvelar, e ainda que se queira a qualquer custo negar o talento e a inspiração, que se queira afirmar que o romantismo e a inocência morreram, eles estão lá, ainda que timidamente. É quando surgem os maravilhosos quatro versos, desde “E mesmo sem destronar o ouro negro” até o ápice do antigo estilo melódico dos compositores “Sonho, vê-lo enfim em seu reinado” (comparem com “Vila, querida, guerreira, tua coroa hoje é cocar” ...), quando todo o estilo de quimera se materializa perfeitamente ante a impossibilidade presente dos compositores. Ou ainda nos dois dos mais brilhantes versos deste Carnaval (“Negro, do açúcar mascavo / Branco toque refinado”), em que, através da transformação do açúcar mascavo em refinado, faz-se uma metáfora perfeita e concisa da essência negra do Carnaval e sua tentativa em “refiná-lo” (a “cobiça holandesa”) – observem o som gutural e sofrido como a melodia valoriza as sílabas em “Negro”, ou ainda pequenos achados perdidos no samba (o emprego das palavras “cana” e “Canaã” em seqüência, a expressão “academia é doce seu cantar”, ou “infinito alvorecer”, etc.)

Ainda que se possa apontar o grupo de covarde por resignar-se às regras atuais do Carnaval ao invés de lutar contra elas, e até mesmo por levá-las contra a própria Vila Isabel, é preciso ver toda a questão de forma mais ampla, pois ela é bastante mais complexa. E é desta forma que este samba do Salgueiro reflete o desejo dos compositores de fazer um samba possível dentro de uma conjuntura atual do Carnaval em que o samba é apenas um acessório de um comércio. “Se não podemos contra eles, que sejamos por eles”, como único jeito de também se beneficiar com as regras do jogo. No entanto, o que nos parece profundamente comovente neste samba em particular é uma consciência profunda de que este samba não é “nem melhor nem pior” que os outros, é apenas o samba possível.


9) Tijuca

Após dois anos de sambas extraordinários, o samba da Tijuca para 2004 deixa a desejar, e acaba refletindo um certo espírito de crise interna na escola após o decepcionante resultado do aguardado Agudás. E não por culpa do enredo, que é um dos mais interessantes deste Carnaval, uma releitura do Renascimento a partir de um confronto entre ideal e realidade, sonho e ciência. Apesar de alguns achados em termos de melodia (especialmente em “é tempo de sonhar”), que possui contornos inventivos, o samba sucumbe por sua falta de estrutura interna, e pelo seu tom primário em termos de letra. Em primeiro lugar, as inúmeras repetições (a palavra sonho e derivados aparece cinco vezes, “viajar” e “lutar” duas vezes, “com a Tijuca” e “eu vou” duas vezes). Em segundo, a falta de criatividade na estrutura dos versos, que na maior parte das vezes se limitam a listar um conjunto de verbos e substantivos como se fossem palavras-chave, mas sem nenhuma articulação entre eles (substantivos: “de sonhos e criação / desejos, transformação”, “profecia, loucura, magia”, “a lua, a terra e o mar”; verbos: “acreditar, desafiar, superar os limites do homem”, “querer voar e flutuar”, “quero desvendar, levar”). Isto se reflete nas rimas, em geral muito pobres, com absoluta ênfase na terminação em “ar”. No entanto, alguns versos, em que a terminação provoca um certo tom de reticências, dão ao samba um certo charme melódico que estimula o canto (“a lua, a terra e o mar”, “desvendar, levar”, e o belo verso “o velho sonho de ser imortal”). No entanto, toda a possibilidade que abria o enredo para um samba que incorporasse em sua estrutura uma idéia de sonho articulada com uma idéia de trabalho concreto e rotineiro acaba despedaçada pelo absoluto aspecto primário da composição do samba. No entanto, talvez permaneça como a maior incógnita entre os sambas de 2004 em termos de sua repercussão na Avenida.


11) Caprichosos de Pilares

Um samba de um ícone popular como a Xuxa e vindo de uma escola como a Caprichosos, que sempre preferiu sambas fáceis ou as “neo-marchinhas”, poderia seguir muitas opções: ser um samba puramente de empolgação e alegria, ou uma abordagem infantil no sentido de ser quase didática, ou ainda uma espécie de colagem de expressões típicas da apresentadora e de suas músicas (com abuso dos “xis”), etc. Mas os compositores surpreendem porque seguiram o caminho mais fácil e o mais difícil, e daí a surpresa desse samba. Ainda que dentro de todas essas opções – e em certos trechos cada um desses aspectos pode ser claramente identificado – e de tudo o que se poderia esperar de um samba com um enredo como este, os compositores conseguiram sua coerência por apostar em um samba simples mas de bom gosto melódico, e, acima de tudo, por realizar um samba em que uma visão de melodia suplanta a necessidade decorativa da letra.

Humildes, os compositores optaram por uma samba repleto de meios-tons e contornos melódicos atípicos de um samba mais popular ou de empolgação. Todo permeado por uma bossa envolvente, com pausas que facilitam o canto e a bateria e, especialmente na primeira parte, por versos de passagem em tom menor, o samba inclusive chega a usar (na metade da primeira parte) uma estrutura de letra que nega o “ABAB”, ou seja, a rima imediata. Em termos de melodia, os contornos mais atípicos estão na segunda parte, em que – exemplo cada vez mais raro nos sambas desta década – o descritivo sucumbe ao melódico, especialmente no emprego do “ah!” ao começar o primeiro verso.

Em termos de letra, o samba tem duas passagens memoráveis. Já pelo título, o enredo é claro: o reino encantado da Xuxa tem relações diretas com o Carnaval, já que o Carnaval é época da valorização da imaginação e do sonho. Pois bem, os quatro primeiros versos fecham a questão de forma absolutamente sintética. “Pilares é festa / já tô no reino encantado, amor”. O Carnaval é como uma festa infantil, ou ainda como “um reino encantado”. “A lua a brilhar ... sonho de cristal”. Mais uma evocação do desfile da escola (à noite) com o cenário da festa popular, e a questão da encenação (“brilhar”, “cristal”) e da fantasia e da imaginação (“lua”, “sonho”). E enfim, os versos que explicitam a síntese: “Xuxa, Caprixosos, Carnaval”.

Ao final da segunda parte, a questão retorna de forma mais sutil, ganhando um contorno quase místico. Ao falar da paz como forma de energia, os compositores tornaram a questão concreta quando “vestir-se de azul e branco” se associa à própria manifestação carnavalesca. Em contraste com o penúltimo verso, longo e contínuo, o último verso insere uma quebra, com magras quatro sílabas e um tom menor, de contorno bastante austero. A “fantasia” traz de volta o Carnaval: ela é o espelho de uma atitude carnavalesca que, ao recriar a possibilidade de um mundo da imaginação e de transfiguração subversiva da realidade, canaliza a esperança de um mundo de paz e nova energia.

O ponto fraco deste samba é sem dúvida o refrão do meio. Além de ter uma melodia repetitiva (a estrutura dos dois últimos versos é exatamente idêntica à dos dois primeiros), é um pastiche do refrão do meio da Caprichosos em 2000. Comparem:

“Se a vida é um xou (A) /
Tá no ar a magia (A) / de viver (B)
Tira o pé do chão (A) /
Hoje tem alegria (A) / ilariê” (B)
(Caprichosos 2004)

“O violão (A) / a bossa nova (A) /
Uma canção do rei (B) /
Um hippie (A) / sem compromisso (A) /
O coração, a lei” (B)
(Caprichosos 2000)

A melodia é idêntica; a única diferença é no tamanho dos versos. A estrutura é AABAAB. Enquanto em 2000, A tem quatro sílabas e B, seis; em 2004, é o contrário: A tem seis sílabas e B, quatro. Mas a cópia ainda foi tão mal feita que na parte “de viver” uma sílaba ficou faltando (vejam, “ilariê” tem quatro), e a saída foi postergar o “de”. Bom, se bem que em 2000, no verso “um hippie” também falta uma sílaba...

Mas ainda há uma parte que sinaliza muitos dos objetivos desta modesta composição: o refrão principal. Ápice da visão afetiva e humilde dos compositores, de seu olhar infantil como reflexo de uma ingenuidade, o refrão cresce muito na bela gravação do CD em que o coro das crianças quase abafa a voz de Jackson Martins, e desvela a idéia de que, nesse “Carnaval encantado”, é preciso a participação de todos. E vem um verso-síntese, um “refrão-desabafo” (remeto com a expressão ao efeito do refrão principal da Tuiuti 2004), cuja força de expressão é muito mais autêntica que o medo formalista da repetição (e com isso lembra o samba de Lequinho e Amendoim não-escolhido pela Mangueira em 2003 “eu sou feliz... eu sou feliz!”): “Xuxa, eu te amo, eu te amo, meu amor”.


12) Porto da Pedra

Apesar de irregular, o samba do Porto da Pedra dá sua contribuição nesta safra por se debruçar sobre a questão do ritmo no samba-enredo atual. Assim, propõe-se a ser uma mescla entre um samba mais leve, de expressões fáceis e ligeiras, com um samba de molde mais clássico. Num certo sentido, portanto, sua proposta não é muito diferente da do samba da União de Jacarepaguá de 2003, em que dois refrões fortes eram contrabalançados por um samba de miolo clássico, com versos longos e cheios de proparoxítonos. Este samba do Porto da Pedra, no entanto, está longe de ser formalmente tão elaborado quanto o de Jacarepaguá, mas impressiona em primeiro lugar por sua concepção atípica de estrutura. Seu estilo descritivo, de versos longos, com descontinuidades rítmicas, com uma longa introdução, atinge o ápice na primeira parte, quase totalmente sem rimas, com alguns achados, como a ambígua pontuação em “você é meu porto (.) da pedra te enviei”, ou ainda da original pausa melódica antes do crescendo em “revelar”. O bom gosto, seja melódico, seja da letra, se faz presente em diversas partes (melódico em “eu fui a voz de antigas civilizações”, de letra em “senhores com brasões engalanados”, etc.), ou em quase todo o início da segunda parte. O ponto alto do samba é o belíssimo verso “no sorriso largo de um moleque fui recado”. Esse requinte é quase atípico do enredo que beiraria o trash, com a necessidade de citação da internet e os “arroba ponto com” da vida.

Mas o samba de molde clássico também precisa parecer moderno, precisa ter uma roupagem mais adequada. E aí surgem trechos de gosto duvidoso (o “vem, vem” logo de início, ou “levar pra lá e trazer pra cá”), como todo o final da segunda parte, com cinco “tô”, e um verso insípido como “eu tô na boa, antenado, é carnaval”. Na dificuldade de conciliar essas duas tendências, o samba do Porto da Pedra parece completamente irregular, e vem provocando uma reprovação quase geral. No entanto, por outro lado, é uma escolha corajosa, já que o samba tende a um andamento mais cadenciado que a média dos sambas atuais. Ainda assim, o samba é longo, e em algumas vezes se arrasta, o que pode provocar um desequilíbrio para a harmonia da escola. Seu resultado parece, no entanto, menos importante que a tentativa, e mantém sua contribuição no sentido de um reforço de um estilo mais melódico e elaborado em detrimento do trash de consumo imediato.


14) São Clemente

Neste ano, quando a São Clemente retorna ao Grupo Especial, a escola resolve apostar novamente num enredo crítico, após anos em que a escola retornava ao Grupo Principal com enredos completamente fora de suas características (de Rui Barbosa a Guapimirim). O tom irreverente encaixou como uma luva no estilo nada discreto do carnavalesco Milton Cunha, e o mais importante é que a escola fez as pazes consigo mesma, e novamente a São Clemente recupera sua identidade carnavalesca. Isso se reflete diretamente no aspecto musical. O samba-enredo escolhido pela escola não é um primor em termos musicais, ou de melodia, não é um samba de invenção. Mas isso pouco importa em relação ao fato de que a São Clemente afinal consegue restabelecer um contato com sua identidade musical, com sua essência carnavalesca. Até porque o estilo leve e despojado da São Clemente nunca proporcionou sambas-enredo clássicos. Ao contrário, o padrão da escola sempre optou pelo viés despretensioso e alegre, e seus sambas sempre optaram pelo tom crítico que se espelha melhor através da letra que da melodia. Mas foi a partir dessa mesma despretensão que a escola apresentou seus melhores sambas-enredo, seja pela irreverência de E o Samba Sambou (1990) ou pelo tom mais melodioso de Capitães de Asfalto (1987).

Dessa forma se espelhou toda a polêmica pré-escolha em torno do samba de Jorge Melodia e cia. Os mais conservadores reclamaram do suposto tom chulo do refrão do meio, em que se fala de “todo mundo pelado” e a “perereca da vizinha”. Mas em geral a escolha foi quase unânime, e o público presente aos ensaios abraçou o samba escolhido como há muito tempo não se via. Após a escolha, alguns mais afoitos, ao contrário, chegaram a consagrá-lo como o melhor samba deste Carnaval. Nem ao céu nem à terra: na verdade, o samba escolhido é um meio-termo entre o tom escrachado dos sambas dos anos oitenta e um certo refinamento melódico típico dos últimos três sambas da escola (pós-Eugênio Leal). Era, na verdade, um meio-termo entre o samba de invenção melódica e rítmica (o da parceria de Eugênio Leal), o samba de resgate explícito ao estilo verborrágico da escola (o da parceria de Diego Mendes, o mais crítico, cuja estrutura remetia diretamente ao samba de 1986, “muita saúva, pouca saúde, os males do Brasil são”) e até mesmo o atual samba de oba-oba (o da parceria de Fernando de Lima).

Fortemente discursivo, com a letra suplantando a melodia, este samba da São Clemente cumpre seu papel: restabelece a identidade musical da escola, ainda que seja um samba que deixe a desejar em termos de algumas de suas soluções melódicas e rítmicas.

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Na próxima coluna, esperamos nos concentrar na safra dos Grupos de Acesso A e B (isto se eu conseguir “ter acesso” ao CD do B ...)

Marcelo Ikeda
21/01/2003