12/21/2011

samba Mangueira 2012

Os amigos devem saber que não sou uma pessoa que tenho um grande amor (apaixonado) pela Mangueira, tamanho é o fanatismo de sua torcida, mas é preciso dizer que há algo especial na Mangueira, que irradia. A nova administração do Ivo Meirelles tem a sua beleza, exatamente por saber valorizar essa energia que é “ser mangeirense”, identificar que essa é a essência da Mangueira.

Vemos acompanhando nos últimos anos a intensificação de um estilo de Carnaval em que o espetáculo visual tem primazia sobre o desfilar. Ou seja, o desfile das escolas de samba se tornou algo para SER VISTO e não para SER VIVIDO. Muito haveria para ser falado sobre isso, a transmissão da TV, o turismo internacional, os vícios da tal “profissionalização” das escolas, os critérios draconianos de julgamento, etc.

O que vem ao caso é que a administração do Ivo Meirelles tem sido um contraponto a isso. Não estou querendo endeusar o Ivo, até porque não sou ingênuo e sei de todas as contraindicações que sua eleição representa numa série de relações mais gerais entre a mídia, o morro e a socidade, mas o que simplesmente quero apontar aqui é que o Ivo – certo ou errado – resolve apostar tudo num olhar que ele acredita e em que ele aposta: e esse olhar é acima de tudo MANGUEIRENSE.

A administração anterior fez uma revolução na Mangueira. Recebeu a escola totalmente falida, e, com uma filosofia de profissionalização, transformou não só a escola mas a própria comunidade da Mangueira, resgatando sua credibilidade no cenário do Carnaval. Vejam a diferença hoje da Mangueira para o Império Serrano ou a Portela. Vimos a Mangueira com uma estrutura exemplar, invejável!

Mas o que vimos? Uma Mangueira como qualquer outra escola. Uma Mangueira luxuosa, talvez como nunca tenha vindo antes. O desfile do Maomé foi exemplar nisso. Carros acoplados, muito luxo, mas cadê a Mangueira?

Anos depois, já com o Ivo, vimos a Mangueira sendo cogitada para ser rebaixada, carros na madeira. Mas a comunidade do samba se juntou, os mangueirenses saíram da toca, superaram todas as dificuldades, e a Mangueira, mesmo com o regulamento draconiano, foi para o desfile das campeãs! Isso sim é a Mangueira! Com isso não estou querendo fazer apologia da miséria ou da desorganização, mas querendo apontar para o que é o Carnaval, o que representa ser mangueirense, e para as diferenças de filosofia entre as duas gestões.
2011 foi a coroação de uma nova filosofia de carnaval na Mangueira: ao contrário de um desfile para ser simplesmente visto, um desfile para ser cantado e sambado. Trunfo: o samba que poucos acreditavam, que não era sofisticado melodicamente, mas era mangueirense. E Mangueira é emoção!

* * *

Assim é o samba de 2012, com a pegada dos sambas do Lequinho, ao mesmo tempo mais simples e ao mesmo tempo com uma certa sofisticação melódica.

Tá lá o olhar do Ivo. O mesmo Ivo que foi campeão na Mangueira, com um samba simples, o de 1986, mas que se tornou antológico. Por que? Porque é um samba mangueirense. Não tem explicação!

O Ivo, que é mangueirense, sabe que só é possível implementar essa nova filosofia se houver um foco no samba-enredo. E que é preciso caminhar pra frente mas que não se pode deixar de olhar para trás. E olhar para trás no caso do samba-enredo da Mangueira é dialogar com a enorme tradição dos anos oitenta e início dos noventa com os sambas do Hélio Turco e Jurandir. Que justamente deixaram de ganhar as disputas com a chegada da nova diretoria.

A influência do Hélio Turco/Jurandir está toda lá no samba de 2011 e está toda aqui no de 2012. Mas ao mesmo tempo não é um samba do Hélio Turco, é um samba do Lequinho.

A síntese de todos esses movimentos (políticos, musicais...) está na brilhante segunda parte do samba. Brilhante mesmo! Com algumas falhas, mas o que importa? É um samba mangueirense. Um crescendo trabalhado com muita energia, com expressões simples que se repetem com pausas para o canto (comparem o papel do “sim” com o do “será” do famoso samba de 1988...). Até explodir num verso de enorme emoção ("Chora, chegou a hora eu não vou ligar"). Mais em seguida tem outro verso de grande impacto emocional (“Mangueira fez o meu sonho acontecer”), mas seguido de uma pausa bastante longa, bem atípica, que nunca entraria num samba do Hélio Turco (taí a pegada do Igor Leal/Lequinho). Ainda, não daria para o samba seguir com outro crescendo para explodir no final (como aconteceria com os sambas do Hélio Turco, por exemplo o de 1992, “se todos fossem iguais a você/que maravilha seria viver”, curiosamente o último samba da dupla). Daí os compositores de 2012 acharam um recurso muito bem encaixado, que encerra o samba com um espírito de humildade raro aos sambas mangueirenses: é preciso respeitar onde a Mangueira chegou, porque isso é raro, e precisa ser comemorado. Lindo final!!! Pra ser cantado e não assistido!!!

4/18/2011

O silêncio como motor do verso

Texto que escrevi sobre o Carnaval 2011, especialmente comparando os desfiles da Tijuca e da Mangueira. Ele extrapola o samba-enredo mas também é atravessado pelas questões musicais. Publicado em http://pedromigao.blogspot.com/2011/03/cinecasulofilia-especial-o-silencio.html



O silêncio como motor do verso

O desfile das escolas de samba de 2011 pode ser visto entre dois aspectos, entre duas opções que se materializam nos desfiles e nas opções de duas escolas: a Unidos da Tijuca e a Mangueira. De um lado, o carnaval-espetáculo, de surpresas e de impacto visual; de outro, o carnaval tradicional, empurrado pelo canto e pelo chão da comunidade. É inegável que Paulo Barros trouxe um outro nível ao Carnaval carioca, criando um desfile de imediata comunicação ao público, compondo traquitanas que se revelam e se escondem ao público, como um quebra-cabeças visual que se revela ao vivo, diante dele, dialogando com os espetáculos de variedade, o circo, o teatro, o ilusionismo. Existe ali uma marca própria de um artista visual que estabelece um desfile de plena comunicação com o público pela facilidade de leitura do seu enredo. No entanto, a participação não se dá num sentido carnavalesco, em que o público é levado a “desfilar” com a escola, mas a interação ocorre pelo espanto e pela surpresa – o público fica boquiaberto, deve “prestar atenção” nos efeitos que surgem e desaparecem, o que precisa de um tempo de fruição: todos os olhos precisam estar fixos para o espetáculo, e não para o outro, o sambista ao seu lado. A renovação que Paulo Barros trouxe aos desfiles das escolas de samba é bem-vinda:a partir de seu sucesso, outros presidentes do mundo do samba tomaram coragem para trazer carnavalescos dos grupos de acesso, como hoje estão Cahê Rodrigues, Fábio Ricardo – e até mesmo a Estácio, que neste ano, trouxe um canavalesco de 26 anos oriundo dos carnavais virtuais, da internet. Mas esse tipo de espetáculo possui as suas contraindicações: a Tijuca destruiu sua enorme tradição de sambas-enredo, que agora tornam-se meras leituras corretas que ilustram um enredo, tanto que sua principal chave é a letra e os refrões, e não as variações melódicas, como os melhores sambas da Tijuca (vide “o dono da terra” e “agudás”, só para ficar nos mais recentes, entre tantos outros). A renovação de Paulo Barros – um novo carnavalesco, uma nova escola, uma nova estética – aponta acima de tudo para “um novo padrão” de desfiles, uma nova visão da administração das escolas de samba promovida pela Liesa, uma “profissionalização da gestão” no sentido de atrair estrangeiros e as emissoras de televisão, as verdadeiras “consumidoras” do Carnaval carioca.

De outro lado existe uma reação romântica e conservadora representada pelo desfile da Mangueira. A eleição de Ivo Meireles – que causou uma tensão no mundo do samba por ser um novo (velho) episódio das relações entre o morro e o asfalto travadas pelas diretorias da escola – trouxe uma transição do estilo democrático que regia a escola para um regime centralizador, em que o novo presidente era responsável por todas as decisões. Uma das mais expressivas foi a dissolução do Conselho que escolhia o samba-enredo da escola, transformando-o em um mero conselho consultivo – o presidente ouve a todos, mas ele sozinho toma as decisões. Caminho que parece o contrário dos rumos de profissionalização do Carnaval atual, que a gestão do Elmo – representado por Alvinho e Chininha – tanto representou para a Verde-e-Rosa, que escapando à sina das “grandes de Madureira”, conseguiu se reestruturar, dados os “novos tempos”. Acontece que Ivo tem duas coisas a seu favor: é uma personalidade midiática e, claro, também é compositor. Ivo Meireles gosta de lembrar que quando ganhou seu primeiro samba pela Mangueira todos diziam pelas suas costas que a Mangueira iria cair com um samba que cantava “tem xinxim e acarajé, tamborim e samba no pé”. Mas a Mangueira foi campeã, “com um desfile pobre e simples, mas com alma de Mangueira”. Como compositor e, acima de tudo, como um apaixonado às tradições mangueirenses – dessa forma contrário à visão grandiosa da antiga gestão, sintetizada pelos enormes carros abre-alas acoplados, nunca antes vistos na Mangueira – Ivo Meireles surpreendeu a todos quando escolheu o samba menos cotado da disputa, em contraposição ao samba de um dos principais “escritórios” da atualidade, que tinha a preferência da quadra. Mas Ivo preteriu o samba do escritório não por teimosia ou por uma postura política ou ideológica, mas simplesmente porque o “samba dos paulistas” era o que curiosamente mais se alinhava com o seu novo padrão de gestão: uma gestão menos profissional e mais afetiva. Na semana seguinte à escolha do samba, o presidente disse à comunidade que queria fazer uma oração. E simplesmente recitou a letra do samba escolhido. Ali era o início de uma opção radical, por uma forma de resistência de se fazer carnaval. No carnaval da Mangueira – antítese do carnaval-espetáculo da Tijuca – o musical não estava meramente subordinado ao visual. O samba e as alegorias e fantasias servem ao enredo, e não meramente o enredo é uma “desculpa” para uma enumeração de efeitos especiais. A essência do carnaval passa a ser o canto e o samba, seus itens de base, de fundo, ligados à formação do sambista: suas tradições, o samba como música e como dança. O desfile da escola de samba passa a ser vivido e não visto. O envolvimento do espectador passa a ser através da emoção e não da surpresa ou do espanto. Ou ainda, através do sentimento e da solidariedade. Se na Tijuca o momento mais impressionante é a transformação da comissão de frente em homens sem cabeça (o efeito, o espanto, o espectáculo mágico), o mais impressionante no desfile da Mangueira é quando a bateria e os intérpretes se calam (o silêncio como motor do verso). Recurso simples, ligado ao que poderia ser visto como uma ausência (uma suposta falha no carro de som), torna-se símbolo de uma potência, porque é na falta que descobrimos a presença do outro. Quando o surdo um da bateria da Mangueira para, o coração continua batendo. Quando o surdo um da bateria da Mangueira para, o coração continua batendo. Talvez seja essa a essência do carnaval, ou melhor, essência, mais do que simplesmente do carnaval, de toda uma comunidade, que dribla a precariedade do dia-a-dia com a busca de algo que os una, que vá além do silêncio. Por isso é brava a romântica opção de Ivo Meireles, em tornar o desfile da Mangueira acima de tudo um desfile de resistência.

9/10/2009

Mangueira 2010

Uma das maiores graças do jeito que a Mangueira organizou sua seletiva de sambas é tentar adivinhar as parcerias que compuseram cada samba. Isso é interessante, pois em certa medida isso já se verifica em todas as escolas, inclusive aquelas que divulgam os autores. Isso porque na maior parte dos sambas, feitos pelos escritórios, aqueles que assinam os sambas são meros “laranjas”, sendo que temos que adivinhar os verdadeiros autores, e daí surgem as especulações e as insinuações dos amigos mais bem informados que dizem que o samba tal é do escritório de fulano, e etc, etc, que já virou a regra das eliminatórias de samba-enredo.


Mas a forma radical como a Mangueira organizou isso – impedindo a divulgação dos autores – só confirma o mais do mesmo: são os mesmos compositores de sempre que vão caminhando para a final, mas ao mesmo tempo a diretoria deixa um ou outro cabeça de bagre claramente só para fazer uma média e dizer que todos têm a chance de chegar “quase” lá – o “quase” aqui é fundamental.


Dito isso, e ouvindo os seis sambas finalistas, digo que apenas dois têm alguma condição de se sagrarem campeões: são os sambas de número 1 e o de número 3. Aparentemente são de dois fortes escritórios do samba, o que confirma que esse tal anonimato não contribuiu de fato para uma democratização da escolha do samba, mas ao contrário, para uma legitimação dos mesmos.


Ouvindo o samba 1 realmente me deu mais uma vez a impressão de ser do Lequinho. É curioso saber que não é ele o autor (dizem as boas informadas e infiltradas fontes...). É uma beleza de samba em termos de letra e melodia. Dificilmente outra escola terá um samba tão leve e ao mesmo tempo tão refinado. O curioso é que o principal concorrente do Lequinho parece ter bebido na fonte original do seu rival: o samba tem um refinamento de letra e melodia típico dos sambas que o Lequinho conquistou na Mangueira, com um refrão forte e “pegado”, marca recente da escola. Há até a repetição de palavras no refrão principal “Chegou, a Mangueira chegou”, presente em quase todos os sambas do Lequinho. Balanços de melodia típicos como “De norte a sul viajei com a melodia” ou mesmo “Vem me trazer a canção”. Fora as comparações, uma leitura leve, fácil e bem criativa do enredo. Grande letra. Trocadilhos funcionais. O refrão do meio é uma beleza. A letra no final da segunda parte é bastante poética, sugestiva e bem construída ("O sol nascerá", as cortinas irão se fechar / "Folhas secas" virão e o show vai continuar). Meu único porém é que diversos versos são muito longos e a melodia, embora bastante criativa, possa "embolar", dificultando o canto.


O samba 3 tem uma melodia criativa, refinada, mas acho mais irregular, menos leve, menos a cara da Mangueira. Sabendo que este sim é do Lequinho, tendo a achar que teve a participação decisiva do Gustttavo (parece que eles estão compondo juntos). Por oputro lado, há recursos que me lembram muito dos sambas do André Diniz e do pessoal da Vila (em termos de melodia): “POETAS IMORTAIS, ARTISTAS GENIAIS”, “ESCOLA DE VIDA, EXEMPLO DE AMOR” ou mesmo “A LETRA ENCONTRA A MELODIA”, “CAMINHANDO CONTRA O VENTO”. Gosto bastante da segunda parte O samba cresce muito na segunda metade da segunda parte (a partir do “no ar”), tendo uma melodia num crescendo bonito e bem arranjado, com emoção, a cara da escola. Pelos “contornos sinuosos” lembra (muito mal comparando) o samba da manga de 93. Mas a primeira parte é irregular, com trechos desencaixados, atípicos do estilo da escola.


Em relação ao samba 5 acho que a Mangueira já passou desse tipo de samba, que é sem duvida mais leve mas bem menos refinado. A Mangueira conseguiu no final dos anos noventa uma sofisticação visual que não mais cabe esse tipo de samba. Sem duvida empolga mas é menos consistente. Mas pode ser que o Ivo queira uma reviravolta, resgatar um estilo “mais popular” (diria “popularesco”) e dialogar com certos segmentos da escola, mas musicalmente não há dúvida que escolhendo esse samba a Mangueira volta muito atrás. De qualquer forma, é bom saber que um veterano da escola está voltando a fazer sambas, entrando na disputa.


Os outros sambas, foram uma ou outra passagem, são bem menos interessantes. Dois sambas bons é pouco para uma escola da envergadura da Mangueira, e mostram que a "abertura" promovida pelo presidente Ivo Meireles não teve efeitos práticos concretos.


2010 !!!

vamos la, vou comecar a postar algo sobre os sambas de 2010...

4/20/2009

imperdível!!!

Extraordinária iniciativa de Ricardo Delezcluze, Chico Frotta e Marcello Sudoh: colocar na net os sambas do Grupo de Acesso de 2008, em especial os dos grupos C, D e E (RJ 2, 3 e 4), completamente fora da mídia.
http://cdacesso.weebly.com/index.html

4/15/2009

Mocidade 2008

- Obra-prima:

1- Mocidade

Para quem já teve dois anos seguidos de Santana e Simpatia, o samba da Mocidade é um milagre, uma benção. E é a coisa mais linda do mundo, porque é um samba que bebe na fonte do maior compositor da Mocidade, o Mestre Toco. Depois de décadas perdendo na disputa sempre com os melhores sambas (i.e os mais ousados, os mais apaixonados, os mais visionários, etc.), Toco finalmente voltou a vencer na Mocidade, mas teve seu samba completamente desfigurado em 2006 e fez um de seus sambas mais fracos em 2007. Agora sim em 2008, seu parceiro Marquinho Marino (com a ajuda do Igor Leal, que já tinha feito belos sambas na Beija-Flor) fez um samba digno das antologias da Mocidade. Samba de melodia original, de letra descritiva mas poética, que foge totalmente das fórmulas, chavões ou frases de efeito, o samba da Mocidade é um milagre, especialmente na segunda metade da segunda parte: mitos, crenças, guerreiros se confundem como se fossem uma visão, com uma melodia que vai crescendo, crescendo, até engasgar na garganta (=emoção, construção, devoção), e, claro, "no peito uma estrela a brilhar", porque como o refrão final coloca, esse samba é acima de tudo um apelo ao espírito guerreiro da Mocidade nessa época de vacas magras para a escola, ou seja, um grande hino, uma grande declamação de amor à Mocidade, ou seja, um samba que tiraria um sorriso de canto de boca do Mestre Toco.

4/14/2009

Birashow - Mangueira 2004

mais comentários sobre sambas da Mangueira na disputa em 2004. Agora sobre o belo refrão final do samba do Birashow, que agora na gestão Ivo Meirelles, acredito que deva voltar a fazer sambas.


"Tô encantado com Minas Gerais
O Eldorado que me traz felicidade
Tempero bom que não me esqueço mais
Vou para Mangueira pra matar minha saudade"

Outro acontecimento na Mangueira esse ano foi esse refrão do samba de Birashow e parceiros. O grande salto desse refrão é traduzir uma idéia de intimidade através de uma noção de melodia e ritmo. Como é possível trazer uma idéia de mineiridade para a estrutura de um samba? É no sentimento dessa "mineirice" que o refrão avança, com uma idéia de sinestesia: a partir da melodia, o samba transcende seus limites, e é quase possível sentir o cheiro e o paladar particulares de uma terra distante (no "tempero bom").

A seguir, o samba insere uma idéia fundamental, afastando-se completamente do domínio do samba descritivo ou do refrão-empolgação para tornar-se um "refrão-de-essência": a de memória ("que não me esqueço mais"). Termina, enfim, com um verso de objetividade incalculável, de apelo irresistível: "Vou pra Mangueira pra matar minha saudade". A saudade de Minas, i.e do Eldorado, do tempero e do cheiro da terra, é presentificada, a partir de uma distância, através da homenagem da Mangueira. A homenagem se revela o refúgio possível, a única forma de matar uma saudade. Assim, o samba atinge outras proporções, se pensarmos que os cantos de lamento africanos eram um refúgio de memória de sua terra natal, na essência da formação do samba e do samba-de-enredo. Em primeira pessoa, o narrador se torna um escravo, lembrando ao longe de sua liberdade. Seu canto é um canto de lamento; a melodia se revela melancólica. A Mangueira é seu abrigo, é uma "imagem", representação possível, fuga pessoal, transe momentâneo, de sua alienação física e temporal, mas nunca espiritual.

Amendoim e Lequinho - Mangueira 2004

Comentários antigos sobre o samba de Amendoim e Lequinho na Mangueira em 2004. Na disputa, perderam para o "Trem Bão" de Cadu e Gabriel e parceiros.


Se a principal característica do samba-enredo dos anos noventa é ter redescoberto o significado das pausas, e a Beija-Flor ter sido a escola que no final da década explorou ao máximo suas potencialidades, é justamente um ex-compositor da Beija-Flor que busca um novo fôlego para a idéia das pausas, uma espécie de "contra-senso" que acaba por confirmar a regra. Amendoim e seu parceiro Lequinho continuam a trilha de experimentação melódica do belíssimo samba do ano anterior no samba proposto para o Carnaval de 2004. Ainda que com resultados não tão satisfatórios quanto os do ano anterior, comprovam que é o único samba com uma proposta de linguagem na atual safra de samba-enredo da Mangueira.

O melhor exemplo do estilo de experimentação proposta com o samba está nos versos :

"Vou buscar por essas trilhas
Histórias que contam a riqueza das minas
E decantar os seus ideais"

A melodia dos versos quebra o sentido tradicional das pausas, inserindo uma nova idéia de ritmo, rompendo mesmo com a idéia do verso, quando o terceiro verso subitamente irrompe do segundo. Em seguida, em "os seus ideais", vemos a criativa quebra melódica típica do samba do ano anterior.

Da mesma forma, na segunda parte, a junção dos versos numa nova idéia de ritmo, além da referência ao mais famoso samba de Cartola:

"Sinto no ar o perfume que as rosas
Roubam de ti, me fazendo sonhar"

A última sílaba não fecha melodicamente o verso, deixando-o em aberto, lembrando o recurso do fim da primeira parte do samba de 2003 ("Anunciando o libertador"). Com isso, acaba sendo um belo recurso para introduzir a parte mais lírica do samba, que começa logo a seguir.

Ou ainda logo no início do samba:

"No garimpo o ouro que peneiro
É Verde e Rosa"

Esses três exemplos comprovam o que está em jogo no esforço de experimentação da dupla: colocar em xeque a valorização das pausas típica dos sambas-enredo atuais. Indagar se até que ponto este jogo é bem-sucedido se torna questão segunda ante ao reconhecimento de uma proposta original de construção.

O trecho final da primeira parte reforça de outra forma a experimentação melódica, desta vez exatamente com uma pausa (após "as belezas"), inserindo uma quebra melódica:

"Transformando em poesia
As belezas de Minas Gerais"

Nos seis versos finais, o samba faz um admirável retorno, como típico samba mangueirense, para uma melodia de contornos mais líricos e sem as quebras rítmicas e melódicas dos trechos anteriores. O lirismo da melodia e a idéia das pausas retornam em versos como "Minas..." ou ainda em "Mangueira sonha acordada". O efeito do "retorno ao lirismo" como forma de fechamento do samba é na verdade o mesmo do samba de 2003, a partir dos versos "Brasil, terra sagrada és a nova Canaã".

25 motivos para se lembrar do Carnaval 2004 :

mais Carnaval de 2004...



25 motivos para se lembrar do Carnaval 2004 :

1 - O samba de Jacarepaguá, a nova Aquarela Carioca
2 - A Avenida coberta por um mar imperiano
3 - Dodô como legítima rainha de bateria da Portela
4 - O desfile visionário de Paulo Barros
5 - O samba do Império Serrano, a eterna Aquarela Brasileira
6 - O carro da "lua apaixonada chorou tanto" na Portela ...
7 - Clóvis Bornay, de volta à frente da Portela, após trinta e tantos anos
8 - A segunda Comissão de Frente da Portela, tradicional, atrás da Comissão de Frente "oficial"
9 - O abre-alas da Tradição, com as letras PORTELA que subiam ...
10 - O carro do DNA da Unidos da Tijuca
11 - A comissão de frente carnavalesca e irreverente da Imperatriz Leopoldinense
12 - O carro do dragão soltando fogo da Vizinha Faladeira
13 - A volta da Unidos de Lucas à Sapucaí
14 - A "água que lava minha alma" do desfile da Beija-Flor
15 - Tahiana Pagung
16 - A pista de autorama em forma de infinito, no último carro do Salgueiro
17 - A volta de uma São Clemente irreverente
18 - O preciosismo acabamento da Santa Cruz
19 - A alegria de Adelaide Chiozzo no desfile da Ilha
20 - Maria Augusta, homenageada a frente da Arranco
21 - A procissão de fé a frente da Viradouro
22 - O show de interpretação de Clóvis Pê na Lins Imperial
23 - Jamelão, que contrariando todas as expectativas, cantou bravamente o samba de sua Mangueira
24 - Os tombos de Cláudia Raia em plena Sapucaí
25 - A ressurreição esfuziante da Vila Isabel

Dois Sonhos e mais alguns outros

mais um texto antigo sobre o antológico desfile do Paulo Barros em 2004. O segundo exemplo a que me refiro é o fato de o compositor Cadu ganhar a disputa de sambas-enredo na Mangueira após a sua quarta final consecutiva. Eu acompanhei o processo de forma íntima porque fiz um documentário sobre o dia dessa quarta final, intitulado TESOURO DO SAMBA. (Nota em 14.04.09)



Dois Sonhos e mais alguns outros

Este Carnaval de 2004 ficará na história por vários motivos, que nem cabe enumerar aqui. Mas, acima de tudo, este carnaval ficará na história da MINHA vida por um motivo muito simples: foi neste Carnaval em que, através de dois exemplos concretos, eu tive a certeza de que ainda vale a pena lutar pelos nossos sonhos, e que, por mais impossíveis que possam parecer, eles podem SIM se transformar em realidade, com dedicação, paixão e perseverança.

Paulo Barros foi a prova disso. Só foi escolhido pela Tijuca porque a escola estava no fundo do poço, cotadíssima para ser rebaixada, a quadra há muito tempo não se via tão às moscas. Não havia dinheiro; não havia motivação das pessoas. Mas tudo isso era secundário: ele tinha um sonho, e fez esse Carnaval como se fosse o último, e concentrou todas as suas energias no que era seu objetivo último. O tema de seu Carnaval foi exatamente este: como o (louco) artista luta por um sonho que a todos parece impossível, e como esse sonho está intimamente ligado ao próprio dia-a-dia do processo da criação. Lembro que muitos chegaram a rir, a caçoar, do refrão final da escola que falava do sonho da Tijuca em ser campeã do Carnaval. Mesmo com um desfile acima de tudo "anti-tecnicista", o vice-campeonato, na frente das poderosas Mangueira e Imperatriz, calou todos os possíveis críticos. Quem agora há de duvidar na possibilidade de um sonho?

Sobre o segundo exemplo, que inclusive acompanhei de forma mais íntima, eu me calo, porque já falei o suficiente, porque aqui não é lugar para confissões. Três ou quatro amigos aqui da lista devem suspeitar do que digo.

Pra quem tem um sonho, por menor que seja, este Carnaval teve um sentido.

Dois Paulos

um texto antigo sobre a ascensão de Paulo Barros e seu antologico desfile de 2004...


Dois Paulos

Este Carnaval de 2004 foi marcado por duas visões, por dois Paulos. Suas semelhanças, suas diferenças, suas respectivas reações a um senso de oportunidade refletem não só o que é o Carnaval, mas nos dizem do que é feita a vida...

O primeiro Paulo, o Paulo Barros, lutou por um sonho. Há anos e anos nos grupos de acesso, finalmente teve a oportunidade de assumir o carnaval de uma escola do Grupo Especial. As condições, no entanto, não eram as melhores, mas tudo isso lhe pareceu secundário. Tudo o que lhe era desfavorável foi transformado em virtude, em fermento para o desabrochar de seu processo criativo. Seu enredo falava exatamente isso: da ligação íntima entre o sonho e o processo da criação. O enredo que aparentemente tinha uma abordagem "tecnicista" e descritiva teve uma leitura absolutamente íntima e metafísica. Não é a partir de uma fissura ou de uma oposição, mas exatamente através de uma conjunção, entre realidade e fantasia, entre o sonho intangível do artista visionário e a concreta rotina que envolve os afazeres diários do processo de criação, que Paulo Barros fez um exame sutil e contundente das falsas contradições que envolvem o Carnaval de hoje, ou ainda da necessidade de o Carnaval de hoje resgatar a possibilidade do sonho.

Enquanto o primeiro Paulo fez das dificuldades matéria-prima para seu Carnaval do sonho, o segundo Paulo, o Paulo Menezes o utilizou como subterfúgio, como sinal de impossibilidade. Muito havia de se esperar do Carnaval da Ilha deste ano, em que o tema da Atlântida representava toda uma busca por um carnaval autenticamente insulano, um resgate ao espírito típico da escola. Mas na verdade o mote "com dinheiro ou sem dinheiro eu também brinco", acabou servindo como uma "desculpa", ou como mero sinal de conformismo, para uma total falta de ousadia e de criatividade.

3/09/2009

Mangueira, equilíbrio e intimismo: Cadu e sua "estética do artesanato"


"Eu não vivo no passado; é o passado que vive em mim" Paulinho da Viola

Após três anos em que foram derrotados na final, Cadu e seus parceiros finalmente venceram a disputa na Mangueira com relativa facilidade (a decisão na final foi quase unânime) em sua quarta final consecutiva. Estesamba é uma espécie de síntese da visão dos compositores sobre o gênero, e ao mesmo tempo consolida sua progressiva evolução, sendo o samba mais trabalhado da parceria.

Para Cadu, não se trata de fazer um samba de invenção: sua proposta é trabalhar de forma incansável e minuciosa dentro dos estreitos limites do gênero. É um samba mais de transpiração que de inspiração, o que de forma alguma significa um demérito: é nítida a preocupação dos autores em buscar a palavra mais exata, o acorde mais perfeito, o tom exato. Dessa forma, a grande chave que sintetiza a impressão causada pelo samba é o equilíbrio. É essa obsessão pelo acabamento que cristaliza a "estética do artesanato" dos compositores.

Mas quem pensa, a partir dessas linhas, que se trata de mero acabamento mecanicista está muito enganado. Por trás de sua aparente estrutura que beira o convencional, desvela-se como nítida expressão pessoal, e daí resume a incrível sutileza desse samba. (E daí lembramos os recursos de uma arte que luta intensamente para esconder seus supostos vestígios de expressão pessoal, mas que acaba paradoxalmente por revelar-se - ou seja, a estética classicista, desde um filme de Howard Hawks até um romance de Tolstoi...). Sua expressão autoral está na leitura do enredo pelos autores como uma inevitável expressão de saudade e melancolia. Nesse enfoque, tudo se encaixou plenamente ao estilo dos autores de preferirem os meios-tons e achave em tom menor. O início do samba, numa espécie de "flashback", já evidencia a estratégia dos autores: é a partir da herança partida do hoje que se olham as maravilhas do ontem. Nesse passeio íntimo pelas riquezas deMinas, seu olhar pelo passado nunca é meramente saudosista e antigo (apesar de claramente tender a isto), mas se conjuga sutilmente com a necessidade do presente. Vejamos a estratégia dos autores em seu refrão do meio:

"Por belos recantos, andei - Das suas águas provei - De mansinho, eu peço passagem - A Mangueira vai seguir viagem"

Os dois primeiros versos tratam das belezas do passado; o terceiro, reforça o tom de intimidade e sutileza que já existia nos dois primeiros versos. Mas o quarto é o mais elucidativo: mostra que mais que simples viagem aopassado, é um pequeno estudo sobre o papel do tempo. Seguindo a viagem pelos recantos, os autores mostram que a vida precisa continuar, que não se pode viver eternamente no passado, que o trem precisa seguir até o seu destinofinal. No fundo não deixa de ser triste, porque revela que é impossível permanecer lá para sempre, ou seja, não deixa de ser um olhar humilde sobre a fugacidade da vida. Todo o samba se estrutura na idéia do percurso e na problematização da revisitação do passado. A primeira estrofe apresenta a questão de forma bastante sugestiva ("A estrada do sonho" / "Real desejo de poder e ambição"). Com "a estrada do sonho", os autores resumem toda a idéia de percurso que caracteriza o samba, além da visão do passado como refúgio idílico impossível. Mas no verso seguinte, o "real desejo" traz de volta a importância da realidade (e a estrada é conhecida como "estrada real"...)

Por fim, em duas partes o samba coroa a fusão de presente e passado e sua estrutura do percurso com uma idéia de destino. A primeira, mais descritiva, é em "eu chego ao Rio com certeza". Mas a segunda é mais poética, uma das chaves de elucidação do discurso dos autores: "As trilhas bordadas em ouro / levaram tesouros a caminho do mar". A ambigüidade dos versos revela a sutileza desse samba: por um lado, um recurso negativo, já que a chegada ao mar representa o escoamento das riquezas para fora do país, uma perda de identidade. Por outro, positivo, já que o percurso e a viagem acabaram sendo bem-sucedidos. O mar surge, então, com inevitável força, como elemento simbólico, valorizado pela melodia, que ganha contornos mais líricos. É em direção a esse mar, como síntese entre o exílio e o encontro, que segue todo o percurso do samba por um rastro de passado perdido.

15/01/2004

2/16/2009

Sambas 2009

Portela 2009

O samba da Portela, fato comum aos últimos sambas do Junior Escafura, prima pela precisão, pelo acabamento. Não tem um único defeito: descreve o enredo com precisão, tem variações melódicas adequadas, pausas para o canto ("Liberdade"), momentosl evemente acelerados para mesclar o ritmo. Tudo com extremo bom gosto, trabalhado com enorme cuidado. Nisso lembra a linha dos sambas do Cadu e Gabriel. Soluções de letra de grande elegância e poder de síntese ("Das trevas renasce o amor", "palácio da saudade"), uma variação rítmica de inventividade ("São vinte e uma estrelas que brilham no meu olhar - Se eu for falar da Portela não vou terminar" quando os versos são estruturados num ritmo que dá uma idéia de enumeração longa, isto é "são muitos títulos e há tanto a se falar sobre a Portela…").

Tudo perfeito, tudo de muito bom gosto. Só tem um detalhe: acontece que o enredo fala de amor, e o amor (para mim pelo menos) é risco, é entrega, é paixão, é algo que não tem medidas, é desmedido, desmesurado. E esse samba da Portela é tudo, menos um samba apaixonado pela possibilidade de abrir seu coração (o que no fundo, diga-se de passagem, é a essência do samba). Ou seja, um samba técnico, frio, extremamente correto e preciso para falar de um sentimento como o amor.

Viradouro 2009

Eu gostei do samba da Viradouro, que tem a cara dos sambas do Flavinho Machado, especialmente pelo "tom afro" de parte do enredo. Falando em enredo, é ótimo ver o Milton Cunha de volta mas sinceramente achei o enredo um tanto maionésico, misturando o tema afro com um tom ecológico meio institucional sobre a Bahia.

O ponto forte do samba são os dois refrões, em que o samba explode, com uma melodia irresistível (Um dia oxalá iluminou), apesar de um pouco deja vu em relação a outros sambas da dupla. Gostei especialmente do refrão do meio, que talvez seja o refrão mais bonito do Carnaval.

A primeira parte tem um ritmo gostoso e suave, típica dos sambas da parceria. Mas a segunda parte é irregular, até um final que chega a ser de mau gosto, pois o samba embola e a própria melodia vai pro espaço ("A água deixa o céu e se abraça com o chão - Renova a energia sob as bençãos de um trovão - Vermelho e branco que paixão"). Além disso, tenho dúvidas se a letra consegue descrever todo o enredo, especialmente em toda essa parte técnica, podendo perder pontos por isso.


Tijuca 2009

Não consigo ver no samba da Tijuca tudo isso que muita gente está dizendo. Acho um samba mais do mesmo. Consigo ver méritos na primeira parte, na melodia e em dois versos que eu gosto bastante, porque tem uma poesia simples (O meu Borel visto de cima é mais bonito - eu vou alçar ao espaço). O refrão do meio também tem momentos de singeleza.

Mas a segunda parte eu acho meio fraca, especialmente o verso (De heróis das estrelas, um céu). Acho que é um samba bom pro desfile, especialmente pro desfile leve e irreverrente da Tijuca, mas em termos de samba-enredo em nada acrescenta.

Além disso, acho MUITO triste que os compositores se dediquem mais à "filial" do que à "matriz", dados os bons resultados da Tijuca recentes (i.e mais chances de voltar às campeãs e receber mais grana…).


Mangueira 2009

O Lequinho está estabelecendo um novo ritmo, uma "nova cara" (colocando nos termos do enredo) aos sambas da Mangueira: ao invés do samba cadenciado, melódico, da emoção dos sambas típicos do Hélio Turco, agora a Mangueira entra na era do samba competitivo. De indiscutível primor melódico e em termos de letra, o samba da Mangueira é guerreiro, como "a cara da escola" de agora, mas falta a sofisticação, a inovação, o tom surpreendente de alguns dos sambas do Lequinho que tanto fazem falta. Aqui há uma única passagem (Cada lágrima que já rolou - Fertilizou a esperança - Da nossa gente valeu a pena). Ainda assim, é incrível como o Lequinho consegue moldar uma energia para o samba, recurso que esbarra na marcha ou mesmo no jingle, mas que ele consegue trabalhar com um certo bom gosto, trazendo um certo "axé", uma "pegada" para o samba ("valeu a pena", "sou povo, sou raça", "sou a cara do povo"). Recursos que são a síntese do que se busca para o samba da Mangueira, que eu particularmente começo a torcer o nariz, embora reconheça sua eficiência. O cuidado em compor as parcerias e moldar alianças também tem se mostrado a marca do Lequinho na Mangueira, no aperfeiçoamento desse "estilo competitivo" que é principalmente a luta da escolha do samba na quadra, especialmente numa escola tão competitiva (e política) quanto a Mangueira, mas é curioso percebermos que a mudança dessas parcerias pouco alterou o seu caminho particular em termos da sua visão de samba-enredo.

Sambas 2009: Beija-Flor

Algumas mensagens sobre os sambas de 2009 do Grupo Especial... a primeira é uma bem informal sobre o belo samba da Beija-Flor

Beija-Flor 2009

Com um pouco mais de calma, escrevo aqui sobre um tema: o samba da Beija-Flor de 2009. Fui ouvir o samba do Tom Tom só depois do resultado final, e fiquei um pouco desconfiado dada a reação de todos de surpresa, pois o samba do Claudio Russo seria antológico.

Mas ao ouvir o samba eu tive uma surpresa, pois fiquei fascinado com a beleza do samba!! É um samba mais leve que geralmente a Beija-Flor traz, e achei um ato de generosidade a vitória dessa samba, de forma que confesso que fiquei emocionado ao ouvi-lo. Isso somado à beleza da gravação (para mim é indiscutível que foi o samba mais bem gravado de todo o CD, com andamento gostoso e acordes bastante bonitos...)

Tecnicamente o samba tem algumas falhas, e me surpreende que o Laila tão perfeccionista tenha se rendido ao samba, mas de fato o samba é irresistível. Há muitas repetições da palavra ”banho” ou seus derivados. No refrão final os versos “Embala eu babá feito um rio de magia / Que deságua luxo e cor” embolam um pouco, etc.

Mas, como dizia, o samba é irresistível e que bom que ganhou! Há soluções tão simples e tão bonitas que me emocionaram nesse samba. A letra é fabulosa, tem um olhar leve sobre o enredo, até mesmo descontraído, com tiradas geniais “O banho foi excomungado”. Há versos simples, mas de grande beleza (adorei os quatro versos finais da primeira parte e o refrão do meio. Adoro o trecho “As águas rolaram/As mentes lavaram” mesmo sabendo que falta um complemento). A letra é de enorme poder de síntese. Adorei o fato de um francês descobrir a importância do banho. A melodia é rica, tem variações, espaços para o canto, etc. O samba não é tão sofisticado quanto o da Mocidade que é o meu preferido, mas de longe é o samba que mais me fascinou nesse ano de 2009. E justamente esse samba, dessa forma, vir da Beija-Flor eu achei que foi um gesto de generosidade do Laila, pois ele não se importou com o tecnicismo da letra e preferiu um samba que tivesse o espírito do desfile e achei isso muito bonito.

O samba do Claudio Russo é bom, mas preferi esse do Tom Tom. A letra dos dois nem se compara.

União de Jacarepaguá 2004

texto sobre a obra-prima que foi o samba da União de Jacarepagua em 2004. Texto meio confuso e longo, mas que pelo menos registra a obra-prima que é este samba. (em 16/02/2009)

União de Jacarepaguá 2004

Todo o samba-enredo contemporâneo se debruça sobre um dilema. Na questão da letra, de um lado, uma necessidade de ser descritivo a ponto de abordar em sua exposição a integralidade do enredo e a disposição (em alas e alegorias) da escola na Avenida; de outro, de ser sintético e com expressões fáceis para tornar o samba de mais rápida assimilação. Na melodia, por um lado ser um samba de apelo cada vez mais popular, por outro, ser uma samba com mais nuances melódicas e repleto de meias-pausas e variações rítmicas em relação ao samba da década de 80, que seguia muito mais à risca suas convenções particulares (tanto rítmicas quanto melódicas).

Este samba da União de Jacarepaguá é uma verdadeira jóia por vários aspectos, entre eles o de ser uma reflexão profunda sobre esse hiato. Seu complexo projeto é na verdade o de reunir as duas tendências, resgatando um samba-enredo de origem mais clássica (até mesmo o samba dos anos 60), mas acrescentando-lhe uma roupagem contemporânea, seja no sentido de presentificar suas formas seja como meio de compatibilização às necessidades atuais do desfile e da disputa de samba-enredo dentro da escola. Temos então um samba de 24 longos versos, além dos oito que compõem os refrões, que descreve perfeitamente o enredo de forma clara mesmo para quem está sendo apresentado a este pela primeira vez, integralmente tomado por expressões simples e objetivas, com dois refrões fortes (especialmente o do meio) típicos dos sambas atuais. Por isso, na verdade é um samba popular, que só não se revela ainda mais devido à sua extensão, mas que não busca as quebras rítmicas e melódicas de uma vertente do samba-enredo atual (Gusttavo, Lequinho, Wilsinho Paz, etc.). Ou seja, não é propriamente um samba de invenção, no sentido de buscar novas formas de expressão para o gênero, mas é um samba de continuidade, de diálogo com uma cadência rítmica mais típica dos anos 80 e de uma estrutura de letra dos anos 60. Fato este que está longe de desmerecê-lo, pois sua vocação é exatamente esta: o de mostrar que não está necessariamente dissociado do apelo popular um bom gosto melódico e um requinte de composição. Por outro lado, quando dizemos "popular", pensamos na comunidade, enfim nas pessoas que tem uma certa intimidade com o gênero, e não nos "turistas" que eventualmente compõem o público da Sapucaí ou que desfilam nas escolas. Ou seja, popular é o público que freqüenta os desfiles do Grupo de Acesso, tipicamente diferente do que atualmente assiste ao Grupo Especial.

Mas se não é um "samba de invenção" e se demonstra uma vocação mais popular, isto não implica em absoluto que o samba seja de pouca criatividade. Ao contrário, este samba de Jacarepaguá se revela como um verdadeiro assombro em termos de sua força arquitetônica, ao construir em cada verso e cada nota, sem nenhuma necessidade de precipitação que o leve para um desfecho sorrateiro, uma leitura do enredo de supremo bom-gosto e requinte: não há uma única palavra ou acorde que não esteja perfeitamente encaixado no samba ou que destoe de um conjunto que suplanta sua simples expressão individual.

O ápice dessa tendência está na extraordinária segunda parte do samba, que - sem nenhum exagero - passa a ser peça obrigatória em qualquer antologia de samba-enredo. Chega-se quase ao limite das potencialidades de um samba atual: está para os nossos tempos assim como o que a "Aquarela Brasileira" representou para os seus. Nos primeiros cinco versos apresenta-se a diversidade das belezas naturais do Rio de Janeiro, com destaque para a singeleza das variações melódicas dos dois primeiros versos (observe, por exemplo, como, no primeiro verso, há uma gradação do agudo ao grave de extrema maestria e habilidade de composição, e como no segundo, se foge,
tanto em termos rítmicos quanto melódicos, da mera repetição do verso anterior). Em seguida, o samba passa a ser narrado em primeira pessoa, com o uso reiterativo de "sou" ou "eu sou", mas nunca como mero espelho de pobreza vocabular, e sim como recurso de expressão, sendo que a melodia nitidamente aponta para a consciência da repetição como efeito expressivo. Os três primeiros versos, de rara beleza melódica, poderiam apontar para um crescendo muito abrupto, tornando, nesta progressão, o samba agudo demais em seus versos finais (vejam por exemplo o caso do samba da Mangueira de 1992, sobre Tom Jobim, em que o crescendo é linear). Mas os autores no verso seguinte elaboram um recurso de extrema sofisticação, trazendo de novo o samba para o mais grave, para em seguida, dois versos adiante, novamente retornar aos acordes mais agudos, revelando a enorme variação melódica da obra e a estratégia dos compositores.

Apostando num tipo de composição que caminha na contramão do "trash enlatado" ou do fast food que contamina os desfiles atuais, revelando a destacada ousadia e coragem tanto do Presidente da escola quanto de sua ala dos compositores, a União de Jacarepaguá, em seu terceiro ano consecutivo no Grupo A, aposta num mesmo estilo refinado de samba-enredo, em consonância com os dois anos anteriores, consolidando uma identidade musical para a agremiação. Este samba, da mesma parceria do também belo samba de 2002 (sobre o sonho de voar), potencializa vários dos avanços do verdadeiro tour de force estilístico que era o samba de 2003, de outros autores, confirmando um trajeto de continuidade e de influência mútua que revela que, ao que tudo indica, os deuses da inspiração sopram para as bandas de Jacarepaguá.

Marcelo Ikeda
23/01/2004.

Unidos de Bangu 1980

Amigos,

deparei-me recentemente com esse desconcertante samba-enredo da Unidos de
Bangu, de 1980. "Juparanã, a lagoa encantada". Sua simplicidade é
comovente:a melodia é linear, os dois refrões com dois versos de igual
melodia. No entanto, é um típico samba-enredo: simples, despretensioso e
mágico.

A idéia dos compositores é a mais típica da essência do samba e do carnaval.
A lagoa Juparanã, quando tudo apontaria para parecer simples como qualquer
outra, de repente se vê modificada: é uma fonte riquíssima, "reino de anões
e fadas", um "mundo de fantasia". Nesse "mergulho", termo felicíssimo, que
coroa essa simbiose da idéia da lagoa em si com uma idéia de inserção
metafórica, a superficialidade comum do nosso dia-a-dia se vê transformada
com o reino de sonhos do nosso Carnaval. A Sapucaí (ou melhor, a Presidente
Vargas, porque o desfile foi anterior à sua construção) não deixa de ser uma
lagoa encantada.

Ao final, numa ingenuidade bucólica que se torna comovente por sua singela
simplicidade, a profecia do samba se realiza. A rima fácil, até de um gosto
duvidoso, é usada assim mesmo, porque acima de tudo fecha a idéia do samba:
"Você vai ver". Qualquer um que ali esteja também pode ser uma das ninfas
douradas que se banham em Juparanã. O espectador torna-se parte da história
e banha-se no cenário iluminado da simples, mágica e profética história da
escola de Bangu.

Aí vai a letra do samba: estou devendo a relação de compositores...




Juparanã, lagoa encantada
Palco da mitologia
Reino de anões e fadas
Mundo de fantasia
Mergulhei na poesia
De raro esplendor
Minha escola mostra agora
A história que Pai Velho me contou

Juparanã, Juparanã,
A lagoa encantada protegida por Tupã

Lindas e frondosas matas
Cachoeiras e cascatas
De mistérios e magia
Ninfas douradas
Permeiam a lagoa encantada
Num cenário de festa
Os pássaros compõem a sinfonia
O arco-íris ao amanhecer
Anuncia um novo dia

Você vai ver, você vai ver
Boitatá e caipora e o saci pererê

Viradouro 2003

Texto sobre o samba do Gilberto Gomes e Gustttavo na Viradouro em 2003, um belíssimo samba, o último grande samba da parceria.

Viradouro 2003

Há sambas que são tão singelos que quase impedem que sejam cantados. Esse é o caso do samba da Viradouro deste ano. A melodia é um acalanto: ficamos estáticos, boquiabertos, não conseguimos cantar ou sambar. Apenas deixamos que um arrepio de alma prossiga conosco. É um samba que nos deixa completamente impotentes, porque só nos resta ouvir: é quase como receber uma prece. É também um samba de homenagem, e é tudo o que uma homenagem pode ser: um abraço afetuoso, uma palavra de carinho. Depois de dois sambas de grande rigor formal e força inventiva, a dupla de compositores Gilberto Gomes e Gustavo, agora hexacampeões pela escola, se rendeu ao enredo, curvou-se à relevância da homenagem. Todo o criterioso trabalho labiríntico de construção formal típico da dupla se rendeu à supremacia da melodia, à necessidade do samba também ser um ato de devoção e não apenas de construção. Com isso, a dupla parece ter avançado doze vidas, com a consciência da necessidade de uma revolução dentro da revolução. É esta afetividade respeitosa que o torna uma das obras de maior maturidade do Carnaval dos últimos tempos. É revelar-se profundamente humano; é colocar todo um trabalho formidável de criação, um esforço tamanho de composição muito abaixo de seu tema, muito aquém do que o Carnaval pode despertar nas pessoas que o vivem. É por meio deste exercício de humildade que a dupla de compositores, agora com o apoio dos novos parceiros, atingiu o que parecia impossível dadas as suas composições anteriores: compor o samba como um ato de um desnudamento.

Marcelo Ikeda.

samba concorrente Mangueira 2003 - Lequinho e Amendoim

Texto muito bacana que escrevi sobre o antológico samba de Lequinho e Amendoim que perdeu a final na Mangueira para o Carnaval de 2003. (em 16/02/09)


O Carnaval de 2003 poderia ser embalado por um samba quase antológico: é o samba concorrente na Mangueira pelos compositores Lequinho e Amendoim, que buscavam um bicampeonato, já que o samba da escola em 2002 foi de autoria da dupla. Ao contrário do samba de 2002, que, apesar de ter um papel fundamental no campeonato da Mangueira, esbarra em inúmeros chavões melódicos e lugares-comuns, ilustrando de forma apenas convencional o enredo sobre o Nordeste, desta vez trata-se de um samba de riqueza singular e, dentro de seus limites, inovador, pelo nível de envolvimento da parte dos compositores, um trabalho de entrega pessoal, com uma carga de interioridade quase inacreditável.

Para traduzir a bela sinopse da escola, que contou a saga em claros tons épicos, os compositores optaram por uma linha ousada. Mas o que torna sua escolha particularmente comovente é que toda a linha melódica do samba se baseia numa idéia não apenas de fé e perseverança, mas essencialmente de iluminação. Com isso, toda a estrutura do samba se baseia num percurso, num caminho místico que não tarda a se desvelar numa verdadeira procissão em busca de uma redenção.

Pulsando como um verdadeiro coração, já que o amor é um dos frutos mais marcantes desse caminho de busca, o samba se equilibra entre um conjunto de sístoles e diástoles, com um nível de ambigüidade raramente visto num samba-enredo, especialmente em sua primeira parte. Entre os tons altos e baixos, entre os crescendos e diminuendos, o samba percorre os caminhos sinuosos e desiguais da narrativa épica do povo egípcio com um vigor quase profético.

O início do samba já ilustra perfeitamente essa opção. “Mangueira...canta.../A saga de um povo sonhador/Mangueira prega /as palavras do Senhor ô ô ô”

Nesses primeiros versos, com destaque para o trecho “Mangueira prega”, destaca-se uma idéia de repetição, que o torna quase como uma ladainha. O “ô ô ô” final, mais que completar o decassílabo, assim como o segundo verso, já apresenta o painel de ambigüidade melódica, em tons baixos, que caracteriza toda a primeira parte do samba. Aí também surge a figura do narrador épico, como uma espécie de “contador de histórias”, que confere ao samba perfeita coerência em termos de ponto de vista com a sinopse. A Mangueira “canta uma saga” e “prega as palavras do Senhor”. A incorporação da ladainha na estrutura dos versos iniciais do samba, como um caminho para uma busca divina, nos faz lembrar o mesmo recurso de “Círio de Nazaré” (São Carlos 1975). Mas há uma pequena diferença, muito significativa. Enquanto no samba de São Carlos o modelo era a dúvida, aqui há a certeza deste caminho: como um percurso histórico, é a saga de um povo que já teve seu final, a redenção. Enquanto os romeiros do Círio de Nazaré clamam por sua salvação (Ó Virgem Santa, olhai por nós/ olhai por nós, ó Virgem Santa / pois precisamos de paz), o narrador épico da Mangueira ao contar a história já revela sutilmente conhecer a vitória e as virtudes de seu povo.

Dessa forma, logo a seguir do começo tenebroso, a oscilação, o crescendo, o tom levemente mais alto. “E derrama em verde e rosa a história / em poesia”. Mas logo em seguida, o caminho de volta, a dúvida. “Que ao povo oprimia” E de novo surge a visão profética, a iluminação. “Mas existia um clamor e um dito ecoou liberdade”. Até terminar a primeira parte com uma síntese das sístoles e diástoles da primeira parte do samba: “Uma estrela brilhou, anunciando o libertador”. Neste verso de melodia complexa, seu tom baixo e levemente sinistro revela de forma muito sugestiva o berço do nascimento do redentor: um mundo de trevas e lama. A última sílaba no entanto marca de forma profética uma espécie de revelação (li-ber-ta-DOR).

Com a apresentação do narrador épico, o estabelecimento do percurso da redenção como uma espécie de ladainha e a descrição do mundo tenebroso que geriu o nascimento do salvador, o samba está pronto para seu primeiro refrão. Após o anúncio do libertador, os princípios da fé podem afinal ser descritos. Se o refrão do meio tende a ser em geral apenas uma espécie de passagem para a segunda parte, aqui todos os pilares desse novo mundo anunciado são expostos pelos compositores. Como uma verdadeira declaração de princípios, é um refrão atípico, com cinco versos bastante longos. Mas não deixa também de ser uma perfeita transição, pois a partir da segunda parte o samba sofre uma brutal transformação.

Após o estabelecimento do tema central do enredo e as idéias do salvador, o samba abandona sua poesia do mistério e da ambigüidade para se revelar inesperadamente lírico. Os versos mais curtos, límpidos, seu tom mais alto, desvelam um típico samba mangueirense. Num crescendo contínuo, o samba coroa o progressivo caminho de vitórias e de conquistas até seu ideal final.

A partir do verso “Brasil!”, o samba incorpora uma ternura e uma euforia quase impensáveis quando ouvimos os taciturnos versos de abertura do samba. Nessa parte final, os compositores fazem uma associação muito feliz entre um tripé que percorre toda a estrutura do enredo: Egito/Brasil/Mangueira. Por que a trajetória longínqua do povo egípcio poderia interessar ao Brasil de hoje? Ou ainda, ao Carnaval de hoje? Qual a harmonia entre esses ideais e o desfile da Mangueira? Sim, porque queremos do Brasil um mundo de paz e esperança. Ou ainda, sim, porque queremos que das dificuldades do dia-a-dia da humilde comunidade da Estação Primeira surja um caminho de vitória que se confunda com o próprio desfile da escola na Sapucaí. O crescendo da segunda parte do samba se torna então um canto poético e apaixonado em torno da sua escola de coração. E do épico, o samba se faz lírico. Não por acaso, é em termos melódicos onde se concentra o clímax do samba.

“Mangueira...
Meu mandamento é te amar cada vez mais
Hoje o meu samba é a paz,
e o mundo é mais feliz”

Mas a grande declaração de amor dos compositores ainda estava para ser feita. O refrão final da saga mangueirense, o mesmo caminho trilhado pela apaixonada visão dos compositores, se encerra com um tom entusiástico absolutamente desconcertante. Com uma entrega passional e uma sinceridade estarrecedora, afirma-se, às claras, sem nenhuma preparação ou qualquer recurso literário que esconda suas intenções, “eu sou feliz!”. E não satisfeito, inclusive desprezando a falta de métrica do verso de oito sílabas, repete-se mais uma vez: “eu sou feliz!”. Não há então como fugir da sentença, fingir não ouvir, tentar que os versos nos passem despercebidos. Numa objetividade cega, num grito de otimismo, simples, profundo e poético, os compositores encerram sua missão final: assim como a saga descrita, o samba composto por eles também chega ao seu final apoteótico. E quem acompanha o samba chega à sua redenção, recebe sua profética iluminação. Nada mais típico de um samba tipicamente mangueirense.

* * *

Ao nascer de uma ensolarada manhã de domingo, a Mangueira finalmente anunciava seu samba para o Carnaval de 2003: era o de Marcelo d´Aguiã, Bizuca, Gilson Bernini e Clóvis Pê. Estava selado o destino do samba de Lequinho e Amendoim: o esquecimento. Daqui a algumas semanas, quando a escola grava sua participação no CD das escolas de samba, e inicia seus ensaios, ninguém mais se lembrará deste memorável samba, que, à sua maneira, seguindo um projeto muito pessoal de samba-enredo, incorporou na própria estrutura do samba um caminho de redenção.

Os ativos mangueirenses que freqüentavam todos os sábados a quadra da escola diziam que o samba de Lequinho e Amendoim era uma decepção em relação ao samba do ano anterior, diziam que havia algo no samba que “não casava, que não se encaixava”. Claro, não casava com um projeto de samba-enredo que prima pelo trivial, pela emoção fácil e pelo discurso linear, que cisma em oferecer de cara todas as suas chaves. Mas o que é particularmente interessante é como, dadas todas as mudanças de tom, este projeto se revela em inteira continuidade com o samba de 2002: é o início que fala em “Mangueira canta”, é o trabalho invulgar com o refrão do meio, é o percurso como caminho lírico de paixão e iluminação, é até mesmo o bordão (quase inaudível desta vez) “bate no peito e diz”. Ou como, entre todas as descontinuidades e ambigüidades tão próprias ao tema em questão, surge uma visão perfeitamente mangueirense. Mas desta vez, até pela unanimidade em relação aos frutos do samba de 2002, surgiu uma postura mais corajosa e arrojada da dupla de compositores. Rebeldia sutilmente repreendida pela conservadora visão da escola. Uma pena. Dado o potencial impacto que um samba vencedor da Mangueira pode provocar em termos de moldar um certo inconsciente coletivo, não seria exagero afirmar que esse samba poderia ter uma influência marcante nos rumos futuros do samba-enredo. Só nos resta torcer que a dupla não acabe retroagindo para uma visão mais conservadora na próxima disputa. Ou então que troquem de escola.

* * *

A diferença entre o tom do samba de Lequinho e Amendoim e o do vencedor é clara. “Surge um caminho de luz pra mergulhar na história”. Enquanto a dupla olha sempre para o futuro, para o grupo vencedor, o caminho é o passado.

Marcelo Ikeda
14/10/2002

Mangueira e Vila 2004: semelhanças e diferenças

Mangueira e Vila 2004: semelhanças e diferenças

Os sambas da Mangueira e da Vila Isabel para 2004 têm vários pontos
em comum: ambos são homenagens a localidades (seja Minas ou Paraty),
em que se usa uma idéia de percurso como resgate às riquezas
naturais e culturais da região. Ambos são compostos por talentos de
uma nova geração de compositores que, entre um acorde e outro, nunca
se esquecem das necessidades competitivas do Carnaval atual. Mas
talvez, do ponto de vista estilístico, mais interessantes que as
semelhanças sejam as diferenças, especialmente quanto à abordagem do
enredo usada pelos dois grupos de compositores.

No samba da Mangueira, a viagem pelas riquezas de Minas se torna
quase um pretexto para uma revisitação austera e melancólica a um
passado distante e perdido. A crise se expressa através de uma
saudade, a partir de uma impossibilidade de resgatar um tempo áureo
de belezas vistas de um presente em que existe apenas um rastro, um
resquício de um passado glorioso.

Enquanto o samba da Mangueira investe na dor desse percurso, para a
Vila ""é doce chegar até lá"". Se na Mangueira o caminho propicia o
recurso à memória e ao passado, no samba da Vila a distinção entre
passado e presente se desfaz, simplesmente não vem ao caso.
Percorrer o caminho passa a ser uma espécie de ressurreição: é como
se estivesse sempre percorrendo-o pela primeira vez. Daí provém a
enorme energia e vigor do samba da Vila.

A melodia é extremamente significativa para constatar a diferença de
visão dos compositores: é só comparar ""as trilhas bordadas em ouro /
levaram tesouros a caminho do mar"" com ""tanta beleza em Paraty / me
embriagou e saí por aí"". Dois trechos de alta riqueza melódica, mas
com pontos de vista estilísticos completamente distintos.

Talvez a principal diferença entre ambos seja que enquanto o samba
da Mangueira trilha esse passado por uma estrada de ferro, o da Vila
percorre por um ""veio azul e branco"". Ou que enquanto a Mangueira
trabalha com uma idéia de destino (""levaram tesouros a caminho do
mar""), o da Vila busca um ideal de liberdade (""que construiu a
liberdade em seu lugar"").

Marcelo Ikeda
24/01/2004

Tutiuti 2003: Paulo Barros

Um texto interessante que escrevi sobre o antológico desfile do Paulo Barros pela Tuiuti, isso antes de ele se tornar a estrela que hoje é (em 16/02/09)

Tuiuti 2003

Após uma comentada disputa de bastidores com a Vila Isabel, o Tuiuti recebeu o “de acordo” dos herdeiros do pintor para realizar seu enredo sobre Cândido Portinari no ano do centenário de seu nascimento. A responsabilidade era grande. Um dos maiores pintores modernos brasileiros, Portinari, em articulação com os princípios artísticos da Semana de Arte Moderna de 1922, traçou em suas telas um retrato social de um Brasil muitas vezes rural e interior sem abrir mão de uma estética experimentalista. O desafio era grande. A nova diretoria, que assumiu a escola recebendo um legado impressionante da diretoria anterior, conseguindo levar a escola ao Grupo Especial, rompeu com Paulo Menezes, a princípio ideal para um enredo de tal porte, contratando Paulo Barros, carnavalesco mais conhecido pela trajetória nas escolas do grupo B e de seu trabalho com materiais recicláveis.

O desafio era grande, especialmente em se tratando de uma escola do Grupo de Acesso, com recursos limitados para traduzir tão ambicioso enredo. Entre tantas outras questões que o novo carnavalesco teria que se defrontar estavam, por exemplo, a das relações visuais entre a pintura erudita e a representação popular, as relações do pintor com o modernismo através de seu papel da ruptura contra o academicismo versus a estandardização dos atuais desfiles das escolas de samba, e, especialmente, a visão particular do pintor em relação ao Brasil e em especial ao olhar social de suas obras.

Mas se o desafio era grande, Paulo Barros conseguiu realizar o mais criativo desfile do Carnaval deste ano, exatamente por optar pelo seu oposto, negando o desafio, e visualizando a homenagem a Portinari com extrema simplicidade e em tons menores.

Ao contrário da opulência de um desfile com um olhar crítico sobre o painel social do Brasil ou ainda de uma reavaliação do processo artístico, Paulo Barros optou pela emoção ao invés do discurso, optou pela intimidade ao invés do olhar crítico. As mazelas da população de baixa renda revelam-se elementos de criação e, por meio do processo artístico, de transfiguração das dificuldades do dia-a-dia. Ao invés de valorizar Portinari como símbolo modernista ou como propagador da cultura brasileira no exterior, Barros preferiu vê-lo como o menino de Brodósqui, criando um enredo quase infantil. Simplificando os conflitos, rompendo um suposto academicismo, Paulo Barros percebeu que o Brasil das telas de Portinari é lindo, simplesmente porque é Brasil. E, com isso, acaba se revelando profundamente ligado com as raízes do Carnaval. É a origem modesta e a representação popular, é a presença do processo artístico, é a possibilidade do “ser-rei-por-um-dia”. Em suma, Portinari é um brasileiro, porque em suas telas, em sua vida, tudo é Brasil, tudo é carnaval. Fundindo todos esses aparentemente díspares elementos numa grande festa, Paulo Barros realizou um desfile memorável, porque, ao negar-se como discurso, ao negar-se como olhar, o desfile do Tuiuti acabou se revelando paradoxalmente tudo isso: um olhar profundo sobre a brasilidade e sua representação, dados os limites dos atuais desfiles das escolas de samba.

E é só então, só a posteriori que entendemos as escolhas de Paulo Barros, desde a concepção da sinopse até a disputa do samba-enredo. Entendemos porque o belíssimo samba do Noca foi preterido pelo “samba-de-sempre” de Fernando de Lima e cia. Sim, o samba de Fernando de Lima encantou e surpreendeu toda a avenida, exatamente por sua sincronia perfeita com o enfoque do enredo. Fernando de Lima entendeu como ninguém o aspecto mágico do enredo, sua tendência ao infantil, ao universo de “sonhos e fantasias”. Opções melódicas como a dos versos como “Retratos da vida que em cores vivas eu descobri”, ou ainda “Vem pincel mágico iluminar / os meus versos e destilar / cores, fantasias” mostram como a estética do “falso encantamento” ou da “melancolia do enternecimento” que vem caracterizando os últimos sambas do veterano compositor se incorporam às “cores vivas” do enredo, sintetizando o tom misto entre o terno e o caloroso escolhido pelo carnavalesco.

Facilitando o acesso a um enredo sobre uma personalidade não-popularesca, mas popular, Paulo Barros, em sua explosão de emoção e alegria, deu talvez a maior das lições do Carnaval 2003, rompendo muitos dos mitos da atual concepção do desfile de Carnaval.

Marcelo Ikeda
30/06/03.

Santa Cruz 2003

Santa Cruz 2003

Após uma tumultuada disputa de bastidores com a Vila Isabel para assegurar sua ascensão ao Grupo Especial, a Santa Cruz abre o Carnaval do Grupo Especial de 2003 expondo um dilema extremamente característico do Carnaval desse ano: a correção ou a espontaneidade. Entre essa fissura, a Santa Cruz, que tantas vezes já foi injustiçada no Grupo de Acesso por seguir um caminho próprio, preferiu a primeira opção, preferiu adaptar-se às regras do jogo. Da mesma forma que os últimos desfiles da escola no Grupo de Acesso, a Santa Cruz optou pelo desfile técnico, em que nada poderia lembrar a Santa Cruz de meados da década de oitenta e início de noventa, justamente quando a escola conseguiu retomar alguma projeção. Nada poderia recordar uma escola que já teve Aroldo Melodia como puxador, que teve refrões como “quem não tem quiabo oferece caruru”, ou que já falou dos “bêbados ilustres” do Brasil, sempre com muito bom humor. Nada poderia resgatar a picardia do retorno da Santa Cruz ao especial, depois de quase vinte anos, com a irreverência do Pasquim e do “gip gip nheco nheco”. Após algumas grandes frustrações, como uma falta de luz, como a não-repercussão do desfile que traz de volta uma mulher ao posto de intérprete – e ninguém menos que Leci Brandão – a Santa Cruz empenhou sua última cartada em seu retorno ao grupo principal em 1997. Num desfile cheio de energia e vibração, com um samba-enredo leve e vigoroso, sobre as bandeiras, a Santa Cruz foi prejudicada num ano em que o descenso era de quatro escolas, tornando a disputa quase impossível para a escola da Zona Oeste. Era a hora, então, do desfile técnico, até porque algumas opções, como Cazuza, ou Abraham Medina, não tiveram a repercussão imaginada.

Negando seu percurso, assimilando a necessidade do “desfile moderno”, a Santa Cruz em 2003 fez um desfile correto. O samba-enredo escolhido, do veterano Fernando de Lima, sintetiza o dilema em que se encontra a escola. É um samba correto, técnico, e exatamente nos intervalos em que se esquece do tom formal e busca um diálogo, alcança seus melhores momentos. É exatamente isso: nesse desfile, a Santa Cruz, sua comunidade se exibiu com um grito entalado na garganta. Antes de desfilar bem, era preciso agora mostrar aos outros que se poderia desfilar bem, que se tinha condições de desfilar como qualquer escola do Grupo Especial. É com base nessa preocupação em mostrar sua “maturidade”, em demonstrar seu “profissionalismo”, ao invés de simplesmente ser madura, ao invés de simplesmente desfilar, que a Santa Cruz bloqueou seu próprio potencial, escondeu-se numa redoma de vidro. O enredo era muito ambicioso: era sobre o teatro desde a sua formação, passando pela Grécia antiga, pelo teatro ocidental e oriental, até chegar ao Brasil. Era um enredo de pompa e luxo. Concebido pela esposa do presidente, foi desenvolvido por um carnavalesco jovem, que pegou o enredo no meio do caminho, e optou por cores fortes, como o rosa e o roxo, descaracterizando qualquer possibilidade de harmonia visual ente os setores da escola. Preferiu-se o histrionismo, ao invés da simplicidade, ou da presença do verde-e-branco. Preferiu-se o tom ambicioso a um enredo afetuoso, ou ainda a um enredo sobre a magia e a ilusão. Não se percebeu que essencialmente era um enredo que não tinha como não ser baseado na emoção, com a presença de tantas personalidades consagradas do meio artístico brasileiro. Mas agora não poderia mais haver espaço para a espontaneidade, para o devaneio, para a emoção. Por isso, a Santa Cruz fez um desfile triste, porque, ao invés de aproveitar a oportunidade há tantos anos lutada pela escola para retornar ao grupo, preferiu tentar mostrar que era uma escola como as outras, ao invés de tentar ser ela própria. Seu destino foi o previsível: os jurados, que desconheciam a escola, que ignoravam tudo o que acabou de ser dito, tudo o que estava em jogo, se limitaram a dar notas exatamente contra todo o critério técnico que a escola havia tanto buscado.

Marcelo Ikeda
26/03/2003

Mocidade 2003

Os sambas-cartilha de Santana e Ricardo Simpatia

Depois dos enredos sobre a paz universal e cia. e da façanha de realizar um dos enredos mais impensáveis da história do Carnaval - a doação de órgãos - a Mocidade resolve fazer uma campanha contra os acidentes de trânsito, chegando inclusive ao descalabro de usar a figura de Ayrton Senna para mostrar ao povo como a alta velocidade provoca vítimas. Em prol do politicamente correto e das campanhas de utilidade pública, a Mocidade com estes dois enredos está para o que foi a Beija-Flor no início dos anos setenta, com seus enredos sobre o Mobral e o Brasil do ano 2000.

A síntese do discurso reacionário, burocrático e didático que busca a Mocidade está nos sambas de Santana e Ricardo Simpatia. Se em Villa Lobos, a dupla ainda consegue instantes de poesia, apesar de irregular, o novo discurso da escola parece ter se encaixado à perfeição no estilo dos compositores. Recheado de imperativos categóricos, permeado de acordes evangélicos que remetem a uma idéia de limite tênue entre vida e morte e de um sentido de missão/redenção, a dupla de compositores parece querer inaugurar uma nova linha - melódica e estilística - na safra de sambas-de-enredo atuais: o samba-cartilha. Torna-se assim pior que os referidos sambas da Beija-Flor, já que estes apenas descreviam as "glórias do Governo", enquanto os da dupla não apenas descrevem, mas sugerem que quem ouça passe a ter um certo tipo de padrão de comportamento. Se pensarmos que o Carnaval é por excelência a época da "inversão", da saudosa malandragem, da revisão dos padrões politicamente corretos, da critica aos costumes, o Carnaval da Mocidade pode ser considerado o "anti-Carnaval", e a verdade é que os sambas de Santana e Ricardo Simpatia são o hino perfeito para esse Carnaval possível: didáticos, burocráticos, reacionários.

Parque Curicica 2003

Parque Curicica 2003

Há sambas que se justificam por um único verso, ou ainda por uma única palavra. Esse é o caso do memorável samba do Parque Curicica no Carnaval 2003, quando a escola pela primeira vez pisou o chão da Marquês de Sapucaí. O enredo sobre o Mercadão de Madureira a princípio parece pouco promissor. Mas mais que puro poder de síntese, trata-se de recurso de incalculável apelo emocional.

Os quatro versos são esses:

“E de repente fogo! alguém gritou
O velho mercado ardeu
Madureira chorou ... chorou
E a alma da gente doeu ”

No meio da segunda parte do samba, os compositores atingiram a parte essencial do enredo: a retratação da tragédia do incêndio que destruiu o mercadão. Os compositores conseguiram exprimir todo o impacto da tragédia em quatro versos de enorme objetividade e impacto emocional. No primeiro verso, a surpresa ante ao inesperado (de repente), a reduzida importância das causas em proporção ao alcance das conseqüências, a dramaticidade da percepção do instante da tragédia, a original mescla do discurso direto e indireto. No segundo, a felicíssima expressão “ardeu”, o discreto uso do adjetivo “velho”, que insere todo um implícito recado sobre o papel do tempo e da decadência física. No terceiro, usando o bordão de um conhecido samba, a idéia do mercadão como símbolo de uma coletividade, expressão de todo um bairro (quem chorou foi Madureira...). No quarto, enfim, um verso irrecusável, a máxima da síntese entre a objetividade e o apelo emocional, entre o discurso metafórico e a expressão concreta: a alma doeu.

Mas na verdade a grande invenção deste samba de Curicica ainda está para ser assinalada, e se resume no emprego preciso de uma única palavra: é o segundo “chorou” no terceiro verso. Essas duas sílabas modificam completamente tudo o que se pode esperar de um samba-enredo. Trata-se de uma enorme contribuição, no sentido de como o samba-enredo pode recuperar um valor expressivo, de como pode ser possível materializar um sentimento. A conclusão dos compositores parece ser pela via negativa: repetir a palavra “chorou” significa que nada mais pode ser feito diante da tragédia, a não ser aceitar os fatos e sucumbir diante da tragicidade do destino. Nada mais resta a “Madureira” a não ser chorar, testemunhar e lamentar a perda de seu símbolo. O que fazer diante do terrível incêndio que destruiu o mercadão? Com isso, o samba acaba assumindo dimensões muito amplas, ao se debruçar sobre a finitude da vida e a impotência da condição humana para lidar com isso. Através da impossibilidade de expressar um sentimento, repetindo a palavra “chorou”, os compositores assumiram uma idéia de impotência e sua fragilidade, incorporando-as à própria estrutura do samba. Só então podemos calcular o impacto do quarto verso “e a alma da gente doeu”, como uma das maiores expressões de desnudamento da atual safra de samba-enredo.

Mais haveria a ser comentado sobre este samba, como, por exemplo, o belo início “É madrugada / o galo canta / lavrador se levanta / vai trabalhar”, que permite um contexto contemplativo ao inserir a importância da rotina no funcionamento diário do mercadão. Mas tudo se desvanece quando se compara aos antológicos quatro versos descritos. Com uma única palavra, os compositores de Curicica conseguiram retratar todo um sentimento de dor e de perda diante da tragicidade do destino. É mais que o suficiente para um samba.

Marcelo Ikeda
04/08/2003

sobre o Carnaval de 2003

Carnaval 2003

O Carnaval atual está chegando a uma espécie de encruzilhada. O Carnaval de 2003 foi um dos mais fracos dos últimos tempos, quiçá da história do Carnaval. Os sintomas são claros: as escolas parecem repetitivas, não animam nem os desfilantes nem os espectadores, tudo parece um pastiche de si mesmo. As causas e as possíveis soluções é que parecem nebulosas.

De concreto, parece o seguinte: as escolas de samba tornaram-se um espetáculo. Ou seja, são apresentações feitas para o deleite visual, para serem assistidas. A reação ideal do espectador é permanecer inerte, possivelmente boquiaberto com a “beleza” e a “graça” das fantasias, dos carros alegóricos e de itens como a comissão de frente, o mestre sala e a porta bandeira, etc. Outro ponto fundamental que modificou o Carnaval são os critérios de julgamento. O desfile técnico passa a ser o necessariamente frio, correto, ou meramente descritivo. A influência dos campeonatos da Imperatriz na década de 90 foi decisiva para os atuais rumos do Carnaval. Mesmo que nos dois últimos anos a escola tenha se esforçado ao máximo para NÃO ganhar o Carnaval, as demais escolas tentam assumir o posto vago deixado pela Imperatriz, para, pelo menos, retornar no sábado das campeãs. As escolas intermediárias, que poderiam buscar um carnaval mais inovador, ou tentam alcançar o “grupo das notáveis”, ou tentam se manter, aos trancos e barrancos, nessa posição, exatamente copiando o “estilo nobre” do grupo das notáveis. Por fim, há três ou quatro escolas que se esforçam para permanecer no grupo. Em suma, não existe possibilidade para o risco no Grupo Especial.

O estímulo à passividade do espectador, a predominância do tom descritivo escolhido pelos carnavalescos, e a imposição de um falso “tecnicismo” nos critérios de julgamento por parte da LIESA formam um tripé que levou o carnaval atual a uma encruzilhada. Talvez até uma crise, mas se o for, uma crise administrada. O Carnaval cada vez mais gera lucros, por isso, pela supremacia do econômico, passa-se uma idéia de que tudo vai bem. Mas quem acompanha o Carnaval cada vez mais se queixa das apresentações do Grupo Especial, cada vez mais confessa uma sensação de cansaço.

A crítica em 2002 foi a do patrocínio. Mesmo com enredos que não tratavam explicitamente de cidades ou de marcas (com a nítida exceção da Grande Rio), os enredos não se tornaram mais criativos, os sambas não se tornaram de melhor qualidade, a inércia do espectador permaneceu. Ou seja, a explicação para o marasmo é outra, de fonte bem mais complexa.